terça-feira, 26 de abril de 2011

UTILITARISMO – DUAS OU MAIS VIDAS VALEM MAIS DO QUE UMA?


UTILITARISMO – DUAS OU MAIS VIDAS VALEM MAIS DO QUE UMA?
O leitor é um cirurgião - e um pouco filósofo. É o chefe de uma equipa de primeira linha de especialistas em transplante de órgãos, com um registo imaculado de resultados de sucesso. Na sua lista de espera encontram-se quatro jovens, todos desesperadamente doentes e a precisarem urgentemente de transplantes sem os quais morrerão em breve. Andrea precisa de um transplante de fígado, Barry de coração, Clarissa de pâncreas e Donald de pulmões. Não existem dadores disponíveis. O leitor está desesperado. Não entrou para a medicina por dinheiro; queria ajudar as pessoas e melhorar as suas vidas, e agora encontra-se diante de quatro jovens que estão a morrer. Eles não fizeram nada de errado; teriam vidas longas e felizes à sua frente, se não fosse a doença. Se ao menos houvesse órgãos disponíveis, ficavam todos bem - uma vez que o leitor já ultrapassou os problemas de compatibilidade de tecidos, rejeição e por aí fora.
Quando está prestes a dizer aos seus pacientes que não há esperança, apercebe-se da entrada do novo recepcionista - por sinal, um jovem, Eric. Sabe, pela sua ficha médica, que é saudável. Os seus olhos adquirem um brilho. Pede a Eric que o acompanhe à sala de cirurgia, para lhe mostrar as instalações, claro, claro ... O seu raciocínio silencioso é:
Quero fazer o meu melhor pelo maior número possível de pessoas. Ao matar Eric, tenho a possibilidade de distribuir os seus órgãos pelos jovens Andrea, Barry, Clarissa e Donald, salvando as suas vidas. É verdade, o mundo deixa de ter Eric; isso é mesmo uma triste perda.
Mas ganhou as outras quatro vidas. Quatro pelo preço de uma é um óptimo negócio. Claro que matar Eric na actual conjuntura seria ilegal, mas o que nos interessa é qual a atitude moralmente certa a adoptar. Se não fizermos nada, perdemos Andrea e os outros, mas Eric continua vivo. Se sacrificarmos Eric, perdemos a sua vida, mas ganhamos quatro. Partindo do princípio de que em termos de qualidade de vida – relacionamento com a família, contribuição para a sociedade - todos os indivíduos são semelhantes, a questão moral parece resumir-se apenas à quantidade, ao número de vidas salvas. No entanto, curiosamente, muitas pessoas sentem-se horrorizadas diante do pensamento de matar uma pessoa inocente, mesmo que seja para salvar um número maior.
Moralmente, deve-se ou não matar uma pessoa para salvar a vida de outras?
A maior parte de nós é bastante inconsistente quanto à perspectiva sobre a importância da vida. (A propósito, vamos partir do princípio de que estamos aqui a falar apenas da vida humana.) Em tempo de guerra, muitas pessoas aceitam naturalmente que as vidas de civis inocentes sejam destruídas para assegurar a vida de uma maioria. Ou, aproximando a questão mais das nossas vidas, muitas pessoas irão morrer mais cedo do que poderiam, porque os governos em vez de aumentarem o orçamento para a saúde, mantêm os contribuintes satisfeitos com impostos mais baixos.
Além disso, parte do dinheiro arrecadado pelos impostos é gasto nas artes, em projectos desportivos prestigiados e em entretenimentos do governo. Se este dinheiro não fosse gasto assim, poderia ser usado para melhorar a assistência a idosos e pobres, reduzindo o número de mortes por ano. A nossa sociedade actual funciona de maneira a que muitas vidas se perdem apenas para assegurar uma melhor qualidade de vida a outros.
Porém, o leitor, o cirurgião, propõe matar Eric para salvar quatro vidas, não apenas para melhorar a sua qualidade de vida. Portanto, será que não devemos apoiar o seu raciocínio?
Se pensarmos que sim, podemos seguir, um pouco imaturamente, a doutrina moral conhecida como «utilitarismo», segundo a qual a atitude certa é aquela que trará (ou terá mais probabilidade de trazer) felicidade a um maior número de pessoas. Será que é isso que devemos procurar? A maior parte das pessoas diria não à ideia. «Ninguém tem o direito de usar os meus órgãos contra a minha vontade», insistem.
Muitos declaram que simplesmente temos direitos sobre nós - somos donos de nós mesmos - e que é moralmente errado que alguém, contra a nossa vontade, nos invada, tire os nossos órgãos ou nos mate, a menos que tenhamos nós próprios feito alguma coisa errada. Alguns vão mais longe, afirmando que também temos direitos sobre o nosso trabalho e sobre os resultados do nosso trabalho; por isso, a maior parte dos impostos é uma forma de roubo. Estes direitos são o fundamento da moralidade e essa moralidade faz do indivíduo um rei. É essa a ideia.
Se o indivíduo é um rei, é moralmente errado provocar a morte de um inocente como meio para alcançar um fim, por mais nobre que seja, como é o caso de salvar a vida de outros quatro. No entanto, a morte de Eric é necessária para que os outros possam viver. Claro que, por vezes, pessoas são mortas em resultado de alguma acção moralmente correcta, no entanto, isso não acontece intencionalmente, mesmo que tenha sido previsto. Matar civis inocentes não costuma ser um objectivo de guerra; é antes um efeito secundário muito devastador. É costume argumentar-se que essa morte não intencional de civis se justifica numa guerra justa e é moralmente diferente da morte de civis intentada por alguns terroristas.
Em oposição à ideia de fazer do indivíduo um rei e delinear a distinção entre resultados intencionais e efeitos secundários, o ideal utilitário da felicidade para a maioria coloca simplesmente em primeiro lugar a questão de qual será o resultado consensual no que a ela diz respeito. Sejam as mortes um efeito secundário ou intencionais, se o resultado for o mesmo, então, do ponto de vista utilitário, não existe
nenhuma diferença moralmente relevante. Do ponto de vista utilitário, não existe nenhuma diferença, por exemplo, entre actos de guerra e actos de terrorismo, se as consequências forem as mesmas.
Mesmo que adoptemos a perspectiva utilitária, podemos encontrar uma falha no argumento do cirurgião. Os indivíduos saudáveis sentir-se-iam extremamente inseguros (da mesma maneira que se sentem em relação a actos terroristas indiscriminados) se existisse um procedimento de os raptar e matar para lhes tirar os órgãos. Lembre-se de que aqueles que beneficiam com o tratamento também podem tornar-se eles próprios vítimas. Devido a esta insegurança, a felicidade total pode muito bem diminuir numa sociedade que abarque tais cirurgiões. Claro que isto só acontece se as pessoas souberem que esse procedimento está a ser aplicado. Imagine que era uma política secreta do governo? Bem, é aqui que o raciocínio utilitário em demasia pode ser prejudicial à nossa saúde. Está com um aspecto saudável? Talvez seja melhor evitar passar muito perto de um hospital de transplantes.
Peter Cave, Duas Vidas Valem Mais Que Uma? Academia do Livro, pp 23-27

SERÁ QUE TODOS OS VALORES SÃO RELATIVOS?


SERÁ QUE TODOS OS VALORES SÃO RELATIVOS?
Uma mulher adúltera é apedrejada até à morte - uma morte lenta e humilhante - num país governado por uma versão da lei Sharia. Na Grã-Bretanha de hoje, nenhuma lei é aplicada contra o adultério. Algumas pessoas considerariam o adultério dela imoral, outras, possivelmente incluindo o marido, não veriam nada de errado nisso. Na Grã-Bretanha, na Europa e em todo o lado, grande maioria das pessoas julgaria o castigo por apedrejamento como horrendo e profundamente errado. Algumas pessoas acham que estes assuntos são relativos. O que ela fez foi errado em relação à sua cultura, mas não foi assim tão errado na cultura ocidental moderna. Em relação à moral idade muçulmana e lei daquele país, ela foi correctamente castigada.
Há muitos anos, num debate escolar, eu falei a favor da moção «Abaixo a minissaia!» Apoiar a moção permitiu envolver-me no humor dos rapazes da escola sobre o duplo sentido de «abaixo a». Na altura, as minissaias estavam na moda, uns anos mais tarde não. As modas vêm e vão – assim como as palavras da moda - «chique», «fixe», «boa onda», «estiloso», «muita louco», «está com tudo». O que achamos atraente, desafiador, aceitável ou ofensivo é relativo de acordo com o contexto. Dizem que antigamente os homens desfaleciam diante do vago aparecer do tornozelo de uma mulher.
Compare como o vinho tinto lhe sabia quando era criança (desagradável?) com o sabor que sente agora. Observe o contraste entre as reacções a um grelhado canino com queijo servido na Coreia e as reacções proporcionadas pelo mesmo prato servido na Grã-Bretanha; entre relações sexuais envolvendo rapazes na Atenas antiga e as mesmas relações no Ocidente da actualidade; ou entre as reacções dos escoceses à música da gaita-de-foles e as dos ingleses a esse barulho - quero dizer, sons.
Os relativistas culturais costumam estender essas relatividades à moralidade. O que é moralmente certo ou errado depende, segundo eles, da sociedade. Os relativistas expansivos
(como eu lhes chamo) ainda expandem mais a relatividade, alguns até mesmo a todas as verdades. Dizem, por exemplo, «Deus existe» é verdade para os crentes mas falso para os não crentes; ou «a Terra é plana» era verdade para a maioria das pessoas na Idade Média, mas não é verdade para nós agora. Eles podem argumentar que quando eu tento dizer que alguma coisa é verdade em absoluto – quer dizer, não relativamente - tudo o que estou a fazer é dizer
que acredito. Não posso sair da minha própria pele e descobrir como as coisas são realmente. Alguns relativistas argumentam que «são realmente» não existe de forma alguma. É tudo relativo.
Será que todos os valores e verdades são relativos?
Discutivelmente, o relativismo parece ser mais persuasivo quando as verdades aparentes têm a ver com a moralidade - com o que nós devemos ou não moralmente fazer - do que quando têm a ver com o mundo que nos rodeia. O relativismo moral é apoiado por muitos seculares ocidentais. Esses relativistas, em relação ao apedrejamento, por vezes concluem enganosamente que é errado interferirmos com as práticas de outro país. Se essa conclusão é proferida como uma afirmação não relativa, designadamente que interferir é errado e ponto final, então contradiz a afirmação de que todos os julgamentos morais são relativos. Não podem agarrar-se consistentemente à sua posição. Essa é uma razão clara para rejeitar o seu relativismo.
Talvez os relativistas morais estejam a dizer que é errado, quanto aos valores de um grupo (presumivelmente o seu), interferir nos valores (relativos) de outro país. Se é essa a história,
posso achar interessante, mas, como se trata apenas de um assunto relativo, por si só não me fornece uma boa razão para aceitar os valores deles.
Embora o relativismo pareça ter uma relação natural com a tolerância liberal - dentro do possível, não interfira na vida dos outros - não existe razão de ser para isso. Não podem coerentemente dizer às nações, facções de indivíduos, que eles estão errados e ponto final quando impõem os seus valores aos outros, pois essas nações podem muito bem valorizar a difusão dos seus valores (relativos) pelos outros. O facto de todos os julgamentos morais serem relativos não justifica que tiremos a conclusão, ainda que de forma relativa, que não devemos interferir nas práticas de outros países, assim como não justifica o contrário.
Uma vez que a moral é considerada relativa, põe-se a questão: em relação a quê? À sociedade em que vivemos? A subgrupos - facções, partidos políticos, uniões, clubes? A alguma outra autoridade? A mim? Seja qual for a resposta, devíamos perguntar aos relativistas: a vossa resposta é apenas relativamente verdade, ou seja, apenas verdade para vocês ou para o vosso grupo? Se for, será que devo dar-lhe atenção? Se não for, então vocês não são verdadeiros relativistas.
Os estudantes por vezes professam uma crença nos relativistas. Eles vêem-se confrontados com a insensatez da sua crença quando lhes fazem ver que se estiverem certos, não devem protestar que esteja errado que eu lhes dê notas baixas. «Os nossos trabalhos estão bons», insistem. «Absolutamente», digo eu, «mas como não existem valores não relativos, os vossos trabalhos merecem notas baixas, relativamente ao que sinto neste momento».
Muitos radicais de esquerda são atraídos pelo relativismo moral, porque querem respeitar a identidade cultural das outras pessoas. Isto leva -os à difícil situação de tentarem enquadrar o seu relativismo no julgamento (certamente correcto) de que as mulheres não deviam ser obrigadas a andar cobertas, submetidas a mutilações genitais ou apedrejadas até à morte. É claro que, apresso-me a acrescentar, existem muitos males nas sociedades ocidentais: as mulheres sentem - se pressionadas a terem filhos, um homem ou, não terem homem nenhum.
O respeito pela cultura e tradição não deve ser visto como implicando que todas as culturas e tradições devem ser respeitadas.
Esse respeito implica sim que alguns aspectos são certos em absoluto, não apenas relativamente. A questão está em estabelecer os limites ou onde os encontrar. O sofista da Grécia antiga, Protágoras, é visto como a principal fonte do relativismo expandido e expansivo. «O homem é a medida de todas as coisas», diz. A sua posição é que o que é verdade o é para alguém. Não existe nenhuma verdade e ponto final. Uma resposta rápida (e correcta) é questionar o status da afirmação de Protágoras - tal como devíamos questionar qualquer afirmação que defenda o relativismo.
«Todas as verdades são relativas». Isso é relativo ou não? Se não for, então é uma auto-refutação, por isso devíamos rejeitá-la. Se for, devíamos responder: «Isso está tudo muito certo, senhor. Protágoras, mas porque havíamos de ter em conta o que diz? Afinal, o senhor está apenas a falar de como as coisas lhe parecem a si, não como elas são».
O senhor Protágoras bate com os pés e grita: «Mas eu sou o grande Protágoras que pensou nestas coisas e que viu...» Aqui hesita - o que ele tem de dizer para nos influenciar não consegue dizê-lo com consistência, pois tem de dizer que os seus argumentos são melhores do que os de outros e não é assim apenas relativamente a si. Tem de dizer que viu... ahm ... ahm ... a verdade. E ponto final.
Ponha um relativista moral diante de uma criança inocente a gritar por estar a ser torturada. Pergunte-lhe se ele ainda pensa que o que está a ser feito é apenas relativamente errado. Ponha um relativista expansivo nos carris antes da passagem de um comboio expresso. Pergunte-lhe se pensa mesmo que é apenas relativamente verdade que ele está prestes a morrer.
Peter Cave, Duas Vidas Valem Mais Que Uma? Academia do Livro, pp 85-89.

SÍNTESE DA FILOSOFIA HEGELIANA DA HISTÓRIA

SÍNTESE DA FILOSOFIA HEGELIANA DA HISTÓRIA
A história é o lugar da realização do Absoluto como realidade infinita, i.e., absoluto livre.

A infinitude do Absoluto (Espírito) implica:
a) Que não pode haver limites para o Absoluto.
b) Que nada pode existir fora dele porque tudo o que lhe fosse exterior seria um limite e então o Absoluto deixaria de ser Absoluto, i e, infinito.
c) Como não pode haver limitação e isso implica que nada pode ser exterior ao Absoluto este é necessariamente a totalidade do real.

A História será a progressiva realização do Absoluto ou do Espírito como realidade livre, infinita, isto é, como realidade que vai ganhando consciência de que tudo o que existe tem a sua marca, é manifestação sua. Esta progressiva realização ou autoconsciência do Absoluto é uma transcendência na imanência.

Se o Absoluto assume a condição histórica isso significa que assume formas finitas, temporalmente limitadas, ou seja, torna-se imanente. Contudo, esta ligação ao finito não é uma prisão porque nenhuma forma finita, dada a sua limitação, pode ser definitivamente o Absoluto: manifesta-o de uma forma provisória.
O Absoluto será na sua longa encarnação histórica um devir dialéctico, isto é um processo de constante negação e ultrapassagem das suas figuras finitas, Estas serão suprimidas e ao mesmo tempo conservadas (Este processo de negar e ao mesmo tempo conservar tem o nome de superação - AUFHEBUNG)
 a) São suprimidas porque nenhuma figura finita pode existir por si própria, não tem autonomia ontológica. Suprimir significa portanto negar que as realidades finitas possam subsistir em si mesmas e afirmar que elas só existem como manifestação temporária, limitada, do Absoluto.
b) São conservadas porque sendo manifestações do Absoluto são integradas na totalidade constituída pelo conjunto das manifestações do Absoluto. Se o Absoluto não conservasse essas manifestações, apesar de ultrapassadas, não teria uma história e deixaria fora de si as realidades finitas o que implicaria que não se realizaria como totalidade.

Portanto a história será a forma de o Absoluto se fazer absoluto e, tomar consciência de que tudo o existe tem a marca do Espírito e de que não há limites porque toda e qualquer realidade finita é negada na sua finitude, na sua exterioridade em relação ao Absoluto e integrada no seio deste como manifestação em que o Absoluto se revelou mas em que não se fixou para sempre. O finito será negado como finito e afirmado como o «outro de si mesmo» do Infinito.
A história é assim uma longa odisseia que consiste num processo de totalização, i e, de realização do Absoluto como realidade que auto-suprime qualquer limitação, finitude ou exterioridade, tomando assim consciência de que não há limites ao seu poder. Em suma, se o Absoluto se torna imanente é para mostrar a si próprio que tudo é imanente a si próprio, ou seja, que tudo é manifestação da sua infinitude e que ele tudo governa. A história é a realização do Absoluto como omnipresença, como Espírito do Mundo, i e, a superação da oposição absoluta entre o Infinito e o finito.







ESPÍRITO UNIVERSAL OU ESPÍRITO DO MUNDO (Weltgeist)
(O Absoluto como realidade imanente ou histórica)





ESPÍRITO NACIONAL OU ESPÍRITO DE UM POVO (Volksgeist)
(Realidade finita e de ordem espiritual na qual o Espírito Universal se manifesta mas não se fixa definitivamente. É o «veículo» da manifestação histórica do Absoluto).





INDIVÍDUOS HISTÓRICO-MUNDIAIS
(Seres finitos como Júlio César e Napoleão, que realizam mesmo que disso não se apercebam aquilo que o Espírito de um povo - enquanto lugar ou veículo da manifestação do Espírito Universal - reclama. Cumprem, quer o queiram quer não, aquilo que o seu tempo deles exige, sendo assim meios para o desenvolvimento da vida dos povos).

A FILOSOFIA HEGELIANA DA HISTÓRIA


A FILOSOFIA HEGELIANA DA HISTÓRIA
1. O Sentido da História é a Realização da Liberdade.
Para Hegel o Absoluto (o Espírito, a Ideia, Deus) é o tema da Filosofia. Hegel não se limita a dizer que Deus é ou existe. Mostra como Deus ou o Absoluto toma consciência de que é absoluto ou realidade infinita. Ora uma realidade só prova que é infinita provando a si mesma que não é finita. Uma realidade para se definir concretamente exige a relação com a sua contrária, a identidade forma-se por meio das diferenças.
 Como é que o Absoluto prova a sua infinitude? Assumindo a forma do finito, de realidade histórica, espacio-temporalmente circunscrita. Por isso se o Absoluto, fosse concebido como realidade que transcende, que está absolutamente separada da história, do mundo, isto é, das realidades finitas, ele não tomaria consciência de si como Absoluto ou infinito, não se realizaria, não passaria de Absoluto em potência a Absoluto em acto.
A história, a manifestação do Absoluto no domínio do espaço e do tempo é a maneira de o Absoluto mostrar a si mesmo que é absoluto, isto é, a totalidade do real. Por outras palavras, a história revela progressivamente que nada existe fora do Absoluto, que este governa tudo, que não há limites ao seu poder.
A afirmação do Absoluto como realidade histórica é consequência da afirmação do Absoluto como realidade imanente, isto é, realidade que só existe efectivamente manifestando-se no domínio espácio-temporal. O Absoluto não é uma realidade que se realize como tal de forma imediata porque isso seria transformá-lo numa realidade que estaria dada de uma vez para sempre. Porque razão não pode ele ser uma realidade imediata (não mediata)? Porque razão não pode ele ser uma realidade fechada em si mesma? Porque só se realiza como Absoluto ou Infinito mediante o outro de si mesmo, mediante a assunção de formas finitas cuja realidade
consiste em serem constantemente ultrapassadas e nunca definitivas. Negada a absoluta transcendência do Absoluto, devemos dizer que o Absoluto faz-se e não simplesmente que é. O palco privilegiado desta realização é a História Universal. A vida do Absoluto desenvolve-se no seio da História. Quando dizemos que o Absoluto se realiza como absoluto devemos ter em atenção que o Absoluto é uma realidade espiritual. Ora, Para Hegel espírito e liberdade são realidades idênticas. Deste modo, a História deve ser perspectivada como um vasto movimento de realização ou actualização da liberdade. Assim, quanto mais a liberdade está presente no mundo humano ou histórico tanto mais o Absoluto se absolutiza. A vida do Absoluto é inseparável da experiência humana da liberdade. Caso não houvesse lugar para a liberdade no domínio humano, o Absoluto seria uma realidade abstracta sem vida.
Esta correlação significa que mediante a história o Absoluto se torna para si aquilo que é em si. Em si mesmo, o Absoluto é aquilo que é, mas não tem consciência efectiva de o ser.
 Como é que o Absoluto toma consciência de que é o fundamento que torna inteligível toda a realidade histórica? Tornando-se presente nessa realidade, ou seja, reconhecendo progressivamente que toda e qualquer figura histórica é um momento da sua vida, uma etapa na progressiva consciencialização de que toda a história é a sua história.
Não se esgotando em nenhum dos momentos históricos aos quais é imanente, o Absoluto vai adquirindo consciência de que é uma imanência total, ou seja, que todas as etapas históricas são as formas finitas mediante os quais o infinito se realiza, se actualiza, se conhece a si mesmo. Sendo o Absoluto a razão divina, deve-se dizer que a história é governada pela razão e que devemos ultrapassar uma visão superficial que a transformaria no lugar do caos e da arbitrariedade. A história tem um sentido, uma finalidade racional: a afirmação do Absoluto como realidade livre, ou seja, como realidade que transforma todo e qualquer obstáculo aparentemente exterior numa negação que o Absoluto constantemente nega ou ultrapassa. Podemos dizer que através da história se vai suprimindo progressivamente a distância entre o Absoluto e o mundo humano. Sabemos que o Absoluto deve ultrapassar a fixação em si mesmo e tornar-se imanente. Ora esta imanência não se realiza de forma imediata mas historicamente.
Assim o que significa tornar-se imanente? Significa que há um processo de realização do Absoluto mediante o qual este se revela a si próprio como incluindo os vários momentos históricos no seu seio. O mundo humano torna-se um conteúdo imanente ao Absoluto. Eis o segredo da História: para o Absoluto, torna-se imanente ao mundo é tornar o mundo imanente a si, ou seja, quando o Absoluto se manifesta na história ele transforma-a num conjunto de momentos, que são momentos da sua vida. É nisto que consiste o progresso na consciência da liberdade. Tornando a história um conteúdo que lhe é imanente, o Absoluto ultrapassa todo e qualquer limite exterior.
Reencontramos então uma das afirmações fundamentais da filosofia hegeliana: o Absoluto é a totalidade do real sob ~ forma de devir, ou seja, o Absoluto transforma-se, mediante a imensa odisseia histórica, na totalidade do real. Marcando a sua presença no mundo histórico o Absoluto faz deste a sua presença viva.
Qual a relação entre esta odisseia do Absoluto e a experiência histórica do Homem?
Sabemos já que a efectiva realização do Absoluto é inseparável da realização do Homem como ser livre, ser que não está dividido consigo mesmo. Hegel tinha clara consciência desta cisão. Há no homem uma vocação metafísica, uma aspiração ao Absoluto. Se o Absoluto for concebido como transcendente ao mundo ou à história, a aspiração do Homem é fonte de infelicidade e pode conduzir à alienação, isto é, à negação do mundo e à procura ilusória do além. A sede de Absoluto transforma-se em vivência infeliz a partir do momento em que o homem procura, fora do mundo, algo que está fora do seu alcance. Instala-se o conflito entre este mundo e o outro, entre o mundo terrestre e o reino dos céus (reino espiritual), entre o homem como ser corpóreo e o homem como ser espiritual. Para Hegel, este conflito ou ruptura do homem consigo próprio só pode ser ultrapassado ou resolvido se for vencido o fosso entre o Absoluto (Deus) e o mundo. Esta reconciliação entre Deus e o mundo leva ao reencontro do homem com o mundo, com Deus e com o outro homem. A partir do momento em que o Absoluto é visto como realidade que se realiza na história, a aspiração do homem ao Absoluto deixa de ser uma quimera porque a realização do Absoluto é inseparável da realização da liberdade do Homem. Em suma, a História é concebida de uma forma teleológica, ou seja, como tendo uma finalidade que é a progressiva revelação do Absoluto como sendo e sabendo ser toda a realidade. Por outro lado, a história é uma teodiceia porque
tudo o que nela acontece se justifica como tendo um sentido divino.
A História é um vasto processo, um movimento de progresso que apresenta, sob a aparência superficial do caos e da arbitrariedade dos acontecimentos, os diferentes graus de realização da liberdade, ou seja, de absolutização do Absoluto. Quanto mais a liberdade está presente no mundo humano tanto mais o Absoluto se reconhece como tal, tanto mais efectiva, clara e transparente é a sua consciência de si. Em linguagem religiosa, que Hegel várias vezes utiliza, pode-se dizer que Deus conhece-se no homem, que o "reino de Deus" é também constituído pelo homem.
A razão divina manifesta-se, realiza-se progressivamente, nas criações humanas. Quanto mais o homem é livre, ou seja, se reconhece a si como homem, tanto o mais o Absoluto se absolutiza, i. e, se desaliena, reconhece o mundo como presença de si ou espelho da sua glória. Liberdade do homem e realidade efectiva do Absoluto são termos correlativos.

2.Deus, o Absoluto, é o Espírito do Mundo.
O Absoluto, o Espírito divino enquanto se manifesta na História, assumindo diversas figuras que se suprimem progressivamente umas às outras no seu isolamento, tem o nome de Espírito universal ou Espírito do mundo (der Weltgeist.J A História é o processo mediante o qual o Espírito do mundo atinge cada vez mais explícita consciência de si como livre, i. e, cada vez mais impregna o mundo de espiritualidade.
As entidades que a filosofia da história põe em evidência são os povos: são eles os verdadeiros actores históricos e não os "grandes homens", aqueles a quem Hegel chama "indivíduos histórico-mundiais".
Não devemos, ao dizer que o povo, "o indivíduo que é um mundo", é o veículo do Absoluto, confundir povo e massa. Povo designa aqui uma totalidade orgânica, uma realidade espiritual que se exprime na religião, ciência, arte, costumes, símbolos, mitos. Tudo o que é próprio de um povo é resultado do seu espírito, por exemplo, a sua constituição política. Por isso, ao dizer que o Absoluto, o Espírito do mundo, encarna em determinados povos que o exprimem de uma forma específica devemos dizer que ele se concretiza no Espírito de um povo (VolksgeistJ, a que também se pode chamar Espírito Nacional. Os espíritos nacionais são momentos da actualização do espírito mundial ou universal.
Em cada época histórica um determinado povo exprime de forma mais adequada a realidade do Absoluto, isto é, realiza o mais alto grau de liberdade, possível no seu tempo, e quando dá, no centro do palco histórico, o seu lugar a outro isso não é o resultado de uma decisão moral, de um juízo moral, mas expressão de que tudo tem o seu tempo e que esse povo, atingido o seu zénite, deixou de ser expressão vital do Absoluto.
"Cada povo não pode jazer época (ocupar o "centro" da História) senão uma só vez. A respeito do seu direito absoluto, que consiste em ser o representante do grau mais elevado do Espírito do mundo, os espíritos dos outros povos não têm direito e, tal como aqueles cuja época passou, já não contam na História"(Hegel, Filosofia do Direito, § 347).
A morte de um povo, o seu desaparecimento nos bastidores do palco histórico, é transição para a vida de outro povo. Cada povo, por necessidade intrínseca à própria História, é o protagonista de uma determinada fase ou forma de civilização.
"Graças a esta generalização da noção bíblica de "povo eleito': a História aparece como um vasto movimento de progresso orientado de Oriente para Ocidente e apresentando os diferentes graus de realização da liberdade. Como diz Hegel: «O Oriente sabia e sabe somente que um só é livre, o mundo grego e romano que alguns são livres, o mundo germânico que todos são livres».

3. A Astúcia da Razão Divina
O Espírito do Mundo (O Absoluto enquanto realidade imanente e não transcendente) encarna sucessivamente nos povos cujo espírito mais alto grau de liberdade vai realizando. O Espírito de um povo, por seu lado, encarna em certos indivíduos que desempenham um papel historicamente assinalável. É o caso de Júlio César, Alexandre Magno, Napoleão. Estes indivíduos julgam ser os autores do papel de relevo que desempenham na História. Contudo não passam de actores cujo papel foi determinado pelo Absoluto. Cumprem esse papel quer se apercebam disso ou não.
O Espírito universal que emerge da dialéctica dos espíritos nacionais opera através de indivíduos humanos. Qual o sentido desta afirmação? O de que o Absoluto usou, utilizou certos indivíduos de uma forma historicamente assinalável. Estes, procurando de facto concretizar os seus interesses, os seus fins particulares, realizam uma finalidade universal (cumprem o destino do Absoluto) sem disso terem consciência. Encarnam inconscientemente, sem conceito filosófico, uma finalidade que lhes é superior. Acerca deste tema, da instrumentalização do particular pelo universal (Absoluto). Hegel fala de "astúcia da Razão". o objectivo da manifestação histórica do Absoluto é universal: a realização universal da liberdade. Os indivíduos históricos procuram realizar as suas ambições, os seus interesses pessoais ou particulares. São, em suma, dominados pelas suas paixões. Ora, as paixões, as ambições das grandes figuras históricas são usadas como instrumento pelo Espírito, pela Razão, e ilustram, exibem a astúcia da Razão. Fossem quais fossem os motivos particulares que levaram Júlio César a praticar determinados actos, eles tiveram uma' importância que transcendeu a sua compreensão e a sua intenção. A Razão, na sua astúcia, usou as paixões e ambições desse grande homem para transformar a República no Império elevando o espírito
romano ao cume do seu desenvolvimento. Sem o saber contribuiu para que se desse uma extensão do conceito de liberdade, ao dar a cidadania romana a todos os súbditos do império. Os seus actos acabaram por gerar algo que não estava, conscientemente, nos seus planos.
Os indivíduos realizam inconscientemente, perseguindo interesses subjectivos, aquilo que é objectivamente necessário. Tais são os grandes homens: realizam por "instinto" aquilo que o seu tempo reclama.
Dominados pelas suas paixões e ambições e não pela razão, os indivíduos não tem consciência clara de que são um instrumento de actualização ou de realização da Razão divina. Não sabem que da sua acção resulta algo diferente daquilo que eles projectaram, julgam que só se realizam os seus interesse e não se apercebem de que realizam um objectivo universal, algo que estava para além dos seus objectivos e das suas consciências. Mediante as paixões a racionalidade da História cumpre-se.
As grandes personagens históricas viveram para realizar a sua paixão e «dessa acção resulta algo diferente daquilo que eles projectam e atingem, daquilo que eles sabem e querem imediatamente; realizam os seus interesses, mas com isso produz-se algo que se escondia no interior e do qual as suas consciências não se apercebiam e não estava nos seus objectivos» (Hegel, A Razão na História).
A astúcia da Razão governa o mundo e a desrazão é o instrumento da sua actualização e desenvolvimento. Os homens são «os instrumentos e os meios de algo mais elevado, mais vasto, que eles ignoram e realizam de modo inconsciente».
Compreende-se assim que Hegel negue, rejeite o moralismo piegas que considera as paixões e os interesses como obstáculos ao bem e à moralidade. Para Hegel, a História, lugar de revelação do Absoluto, está para além do bem e do mal.
Há em Hegel um elogio da paixão («Nada de grande se faz no mundo sem paixão») não por ela em si mesma mas pelo que, inconscientemente, a suscita. As objecções de que as ambições, os interesses particulares, as paixões, em suma, são fontes de conflitos, ou seja, são prejudiciais, só são válidas ao nível da existência particular ou privada. Perdem sentido num plano mais amplo, como é o da história universal.