terça-feira, 26 de abril de 2011

NIETZSCHE E O CRISTIANISMO (III) – O ÓDIO E O RANCOR SÃO A RAIZ DA MORAL CRISTÃ


NIETZSCHE E O CRISTIANISMO (III) – O ÓDIO E O RANCOR SÃO A RAIZ DA MORAL CRISTÃ
"A rebelião dos escravos na moral começou quando o ódio começou a produzir valores, ódio que tinha a contentar-se com uma vingança imaginária. Enquanto toda a moral aristocrática nasce de uma triunfante afirmação de si mesma, a moral dos escravos opõe um "não" a tudo o que não é seu; este "não" é o seu acto criador. Esta mudança total do ponto de vista é própria do ódio: a moral dos escravos necessitou sempre de estimulantes externos para entrar em acção; a sua acção é uma reacção. O contrário acontece na moral aristocrática: opera e cresce espontaneamente e não procura o seu antípoda senão para se afirmar a si mesma com maior alegria; Os aristocratas tinham o sentimento de serem os "felizes" e não tinham necessidade de construir artificialmente a sua felicidade, comparando-se com os seus inimigos e enganando-se a si mesmo, como faziam os rancorosos: na sua qualidade de homens completos, vigorosos e necessariamente activos, não aceitavam separar a felicidade da acção; tudo isto está em profunda contradição com a "felicidade" que imaginam os impotentes, os obstruídos, os de sentimentos hostis e venenosos, a quem a felicidade aparece sob a forma de estupefacção, de sonho, de repouso, de paz, numa palavra sob a sua forma passiva. E enquanto o aristocrata vive cheio de confiança e de franqueza para consigo mesmo, o homem de rancor não é nem fraco nem cândido, nem leal consigo mesmo."
A moral dos senhores é a afirmação da força dos fortes, uma celebração da confiança na vida e da acção criadora por parte daqueles que possuem vigor e capacidade de acção. Não há portanto uma repressão dos instintos mas a sua glorificação. Os senhores são cruéis e, contudo, essa crueldade é inocente. Tal como as aves de rapina não podem deixar de o ser, os senhores não podem, por natureza, deixar de ser dominadores e cruéis. Agem de acordo com o seu ser e não segundo a vontade, ou seja, intencionalmente. A "revolta dos escravos" anuncia-se quando os "cordeiros" - que não podem deixar de o ser, que o são por natureza - têm a pretensão de que a sua fraqueza é voluntária, tal como a força dos senhores. Transformando a crueldade em acto voluntário, reflectido, os fracos adquirem o direito de a condenar e censurar. Além disso abalam a segurança e a confiança do forte no seu ser. Esboça-se o fenómeno da culpabilidade. O senhor começa a deixar de ser senhor a partir do momento em que se considera a si mesmo na perspectiva do escravo.
O "cordeiro" é a metáfora do espírito de vingança. A vontade afirmativa da ave de rapina (vontade de poder) começa a ser minada pela vontade negativa da presa (vontade de vingança). A perspectiva do fraco, determinada pelo ressentimento, consiste em pensar a vontade de poder do forte como ódio (o querer a presa é malquerer). Se se deixarem enlear por esta perspectiva que atribui aos fortes o modo de agir que é próprio dos fracos e a sua mentalidade, os senhores são contaminados e deixam de ser o que são.
A moral dos senhores foi a primeira forma de moral idade, a axiologia original. O sentido originário dos conceitos morais (bom, mau) é sempre aquele que os fortes criaram, correspondendo a uma visão aristocrática do mundo. Deste modo a moral dos senhores é uma
consequência do seu ser e não uma reacção contra uma outra visão das coisas. A tomada do poder pela casta sacerdotal provoca a inversão deste tipo de avaliação. O forte impôs os seus valores em nome da potência da sua vontade. O fraco, de instinto enfraquecido e doente, só pode derivar os seus valores da oposição aos valores dos fortes: valores reactivos, valores do ressentimento. O padre ascético, que sabe o que é o mal e a sua origem, tem neste tema a sua suprema preocupação. O ponto de partida da moral que ele produz é a diferença entre a moral dos senhores e a dos escravos e conduz à negação da virilidade dos instintos inerentes à vontade de poder autêntica. As paixões são rejeitadas, o homem é obrigado a escolher entre a razão e as paixões (o que para Nietzsche é uma "castração" da razão), os valores do corpo desvalorizados face aos valores do espírito, a humildade e a passividade transformadas em virtudes (assim como toda a espécie de fraqueza) que rejeitam o orgulho e o vigor como vícios.
Através das ficções do Pecado original, cometido por todo o homem contra a vontade de Deus, e da Queda, o padre ascético faz com que os escravos se tornem senhores e imponham os seus valores. Os nobres são contaminados pela culpabilidade: o padre ascético, cuja capacidade espiritual e seriedade é reconhecida pelo nobre, infiltra a ideia de que só uma humanidade (pecadora), de que o senhor não tem uma natureza diferente da do escravo, ou seja, que nele também vigora a má consciência. A partir desta falsificação, pela qual a doença vence a saúde, o escravo poderá dizer que o senhor finge ser superior: o seu ser transforma-se em aparência, diz-se bom mas não o é.
A passagem ao imaginário, ao Ideal, é produzida pelo desejo do escravo, do fraco. Este desejo é expressão da vontade pervertida de um homem obcecado por si mesmo: pelo seu sofrimento, pela sua doença. Nesta impotência reside a potência do Ideal. O "outro mundo", paraíso de paz e de felicidade, é a projecção idealizada de um inferno interior, a invenção de uma tortura interior. O ideal é uma fabricação da fraqueza e por isso o fraco pode identificar- se com ele. Este ideal permite-lhe avaliar aquilo que o faz sofrer desvalorizando-o. Ser bom é declarar mau aquilo que ele não é. O ideal ascético é um processo moralizante essencialmente
negativo, uma reacção contra, uma vontade de vingança sobre os que identificam o bem com a força criadora que celebra a vida e a fraqueza com o mal.

1 comentário:

  1. Parabéns pelo texto! Gostei de como teceu sua argumentação. Como sugestão você poderia colocar se não no texto, mas ao final as referências para enriquecer leituras posteriores.

    abraço,

    Tiago

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