sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

TEXTOS SOBRE AS CARACTERÍSTICAS DA FILOSOFIA


TEXTOS  SOBRE AS CARACTERÍSTICAS DA FILOSOFIA
1
A alegoria da caverna
Um célebre texto de Platão, conhecido por Alegoria da caverna, dá-nos uma ideia não só do que é a atitude filosófica como também de alguns problemas que ocupam a reflexão dos filósofos.
 Depois disto – prossegui eu – imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos "robertos" colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles.
Estou a ver – disse ele.
– Visiona também ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objectos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados.
– Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – observou ele.
– Semelhantes a nós – continuei -. Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projectadas pelo fogo na parede oposta da caverna?
– Como não – respondeu ele –, se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida?
– E os objectos transportados? Não se passa o mesmo com eles ?
– Sem dúvida.
– Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam?
– É forçoso.
– E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava?
– Por Zeus, que sim!
– De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos objectos.
– É absolutamente forçoso – disse ele.
– Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objectos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objectos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objectos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?
– Muito mais – afirmou.
– Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objectos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?
– Seria assim – disse ele.
– E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objectos?
– Não poderia, de facto, pelo menos de repente.
– Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objectos, reflectidas na água, e, por último, para os próprios objectos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.
– Pois não!
– Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.
– Necessariamente.
– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.
– É evidente que depois chegaria a essas conclusões.
– E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os outros?
– Com certeza.
– E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prémios para o que distinguisse com mais agudeza os objectos que passavam e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo "servir junto de um homem pobre, como servo da gleba", e antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo?
– Suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de preferência a viver daquela maneira.
– Imagina ainda o seguinte – prossegui eu -. Se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol?
– Com certeza.
– E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão ? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam ?
– Matariam, sem dúvida – confirmou ele.
– Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública.»
Platão, A República, Livro VII, 514ª- 517d
2
O significado filosófico da alegoria da caverna

Platão escreveu esta alegoria há mais de dois mil anos mas ela permanece importante para nós porque nos diz muito sobre o que a filosofia é.
Em primeiro lugar, na alegoria, a filosofia corresponde a uma actividade, a uma viagem que nos deve conduzir do fundo da caverna em direcção à luz.
Sendo uma actividade, a filosofia não é um simples conjunto de teorias. É evidente que os filósofos produziram muitas teorias sobre muitas questões fundamentais. Mas não se trata em filosofia de estudá-las para simplesmente as memorizar. Vais estudá-las, em vez disso, para aprender como se faz filosofia. Ao compreenderes como alguns dos melhores filósofos fizeram filosofia, ao considerares os problemas a que tentaram responder com as suas teorias e o modo como construíram essas teorias terás ao teu dispor um instrumento precioso para saber o que é filosofar e filosofares.
Em segundo lugar, a alegoria de Platão mostra-nos que a filosofia (sair da caverna e regressar a esta) é uma actividade difícil. Porquê? Porque a viagem que nos faz subir da caverna em direcção à luz exterior implica questionar as nossas crenças mais básicas, crenças que nos parecem dados adquiridos e incontestáveis. Mais claramente, é difícil porque ao questionarmos as nossas crenças fundamentais podemos ter de enfrentar a incompreensão dos outros, das pessoas que se satisfazem com ideias feitas. É difícil também porque exige disciplina intelectual, esforço crítico e autocrítico. Vamos por partes.
Dispormo-nos a examinar as nossas crenças mais básicas não é tarefa fácil porque pode fazer-nos chegar a conclusões que a maioria dos membros da sociedade desaprovam e porque exige uma atitude crítica que lança a dúvida sobre o que nos habituámos a considerar verdadeiro. Por exemplo, a filosofia examina as crenças básicas nas quais se apoia a religião quando pergunta Será que Deus existe? Que razões temos para acreditar nisso? Há uma vida para além da morte? Também questiona as ideias fundamentais que constituem os pressupostos das nossas relações sociais ao perguntar O que é uma sociedade justa? Será que devemos obedecer a quem nos governa? O Estado é uma instituição necessária? Estas questões podem ser consideradas como desafios às ideias estabelecidas e falta de respeito pelo que a tradição definiu. Basta pensares nos problemas que enfrentam os que defendem, por exemplo, a ideia de direitos dos animais.
A atitude filosófica é também difícil porque exige que pensemos criticamente e rigorosamente acerca de crenças fundamentais que nos foram transmitidas e que aceitámos de forma acrítica.Com efeito, em muitos casos adquirimos ideias como quem contrai gripe, por contágio. À semelhança do vírus da gripe, as crenças estabelecidas parecem fazer parte do nosso ambiente e respiramo-las quase sem dar por isso. Assim, as crenças que eram da nossa cultura tornam-se as nossas crenças. Até podem ser verdadeiras e excelentes, mas como havemos de o saber se as interiorizámos de forma acrítica, sem pensar? Ao examinarmos as ideias básicas, nossas e dos outros, que se transformaram em hábitos mentais, devemos como filósofos perguntar: O que justifica essas crenças? Que razões temos para supor que são verdadeiras? Podemos definir a filosofia como a actividade que critica e rigorosamente examina as razões subjacentes às nossas crenças fundamentais. Sair da caverna é procurar encontrar crenças fundamentais que sejam racionalmente justificadas.

Velasquez, Manuel, Philosophy, A text with readings, Wadsworth, 1999, pp 8-9.

3
A alegoria da caverna e os problemas da filosofia
A alegoria da caverna pode ser usada para ilustrar alguns dos principais problemas da filosofia.
Começa por nos dizer que a filosofia é pensamento crítico. Os prisioneiros nunca viram outra coisa senão sombras e por isso supunham que as sombras que viam no fundo da caverna eram toda a realidade. Quando o prisioneiro que se conseguiu libertar falou de um outro nível da realidade, luminosa e cheia de cor, consideraram – no um louco, porque o seu discurso contrariava o sistema de crenças estabelecido na sociedade. Isto ilustra a importância e a dificuldade de questionar o que está estabelecido e não aceitar algo como verdade só porque há muito tempo muitas pessoas nisso acreditam. Platão adverte-nos contra o saber feito de simples opiniões e lembra-nos que a maioria pode muitas vezes estar errada. Diz-nos que fica à nossa escolha sermos como os prisioneiros que ingenuamente aceitam o que é costume pensar-se ou como o prisioneiro que se liberta da prisão das ideias feitas e dos preconceitos – do hábito de não pensar criticamente – questionando os pressupostos básicos da sua cultura.
Em segundo lugar, no que respeita à epistemologia, Platão lembra-nos que o conhecimento verdadeiro não se identifica com as opiniões mesmo que sejam defendidas por muitos indivíduos.
Em terceiro lugar, nesta alegoria Platão introduz a distinção entre aparência e realidade, que é um tema metafísico importante. Na caverna reina a discórdia sobre o que é verdadeiramente real.
Em quarto lugar, Platão afirma nesta alegoria que há uma dimensão da realidade que é superior e transcendente em relação ao mundo físico, simbolizado pela caverna. Essa é uma das ideias fundamentais de muitas religiões. Contudo, outros filósofos argumentarão que não há evidência de uma dimensão da realidade para além do mundo natural que as ciências estudam. Uma das questões da filosofia da religião consiste em saber se há uma realidade transcendente como Deus e como eventualmente ela se relaciona com o mundo físico.
Na alegoria de Platão estão também presentes preocupações éticas. O prisioneiro que se conseguiu libertar dos preconceitos e das ilusões sente a obrigação de regressar à caverna e libertar os seus antigos companheiros da ignorância a respeito do que é verdadeiramente real. A este propósito podemos fazer as seguintes perguntas: Tinha o prisioneiro a obrigação moral de regressar à caverna e dizer aos prisioneiros que estão iludidos? O que são obrigações morais? Como conciliar o meu desejo de felicidade com os interesses dos outros?
Finalmente, algumas questões de filosofia política também são sugeridas pelo texto. A alegoria sugere que há diferentes concepções acerca do que é real, verdadeiro e bom. É possível e desejável uma sociedade pluralista em que haja diversidade de concepções acerca de como devemos viver e organizar a vida social? Ou deve o Estado em nome da segurança e da estabilidade sociais limitar drasticamente ou mesmo abolir a liberdade de expressão? Deve o direito de governar basear-se na vontade da maioria quando esta tantas vezes se engana? Ou deve o poder político ser entregue aos mais capazes do ponto de vista intelectual? Devem os interesses do indivíduo ser subordinados aos interesses da sociedade?

Lawhead, William F. The philosophical Journey - an interactive approach to philosophy, McGraw-Hill, 2003, pag.8


4
O que é a filosofia e como se estuda?

A filosofia trata de problemas conceptuais e não formais. Como a matemática, a filosofia não é uma disciplina empírica; isto é, não trata de problemas que se possam resolver pela observação ou pela experimentação.
Assim, a filosofia não é uma disciplina como a física ou a história, que são disciplinas empíricas. Contudo, ao contrário da matemática, a filosofia não se ocupa de problemas que possam resolver-se por meio de provas formais. Os problemas da filosofia só podem ser resolvidos por via da discussão racional cuidadosa e sistemática.
É enganador pensar que os problemas da filosofia, por serem de natureza conceptual, não são verdadeiros problemas, ou não são problemas reais. O problema de saber se o aborto é eticamente permissível não é menos real só porque é um problema conceptual. Dizer que um problema é conceptual é só dizer que não é um problema susceptível de ser resolvido recorrendo à experiência ou ao simples cálculo — mas pode ser um problema real e importante. Acontece apenas que é um problema cuja solução depende fundamentalmente do pensamento, incluindo a avaliação crítica de pontos de vista diferentes.

Há uma certa tentação popular para argumentar que não há problemas reais desse género; que todos os problemas reais são ou matemáticos ou empíricos. Mas esta posição não é susceptível de ser provada recorrendo à experiência ou à matemática. O que significa que mesmo quando tentamos argumentar contra a filosofia estamos a argumentar filosoficamente. Ora, é auto-refutante argumentar filosoficamente contra a filosofia, tal como seria auto-refutante refutar a astrologia com um argumento astrológico.

Dizer que a filosofia trata de problemas conceptuais, e não empíricos, não é o mesmo que dizer que os filósofos desprezam a experiência quando procuram resolvê-los. Um filósofo cujas ideias contradigam frontalmente as nossas intuições mais fortes acerca da realidade tem de apresentar argumentos ainda mais fortes para explicar essa contradição. Do mesmo modo, um filósofo não pode defender ideias que contradigam ou ignorem a informação empírica e os conhecimentos
mais solidamente estabelecidos pelas ciências empíricas. E em muitos casos, não é possível reflectir filosoficamente sem ter em conta ampla informação empírica; por exemplo, não é possível discutir o problema filosófico do estatuto moral dos animais não humanos sem ter informação sobre a biologia dos animais não humanos.
A filosofia evoluiu bastante, sobretudo nos últimos cinquenta anos. Contudo, muitos dos problemas centrais da filosofia continuam em aberto — e são esses problemas que interessam aos filósofos. Assim, o estudo da filosofia é diferente do estudo que em geral se faz nas outras disciplinas. Quando se estuda história ou biologia, o que se exige do estudante, geralmente, é que compreenda os resultados hoje consensuais dessas disciplinas. Ao estudante não é, em geral, exigida uma atitude de investigação; tudo o que se lhe pede é que compreenda e formule as teorias e factos estudados. Em filosofia, pelo contrário, o que se pede ao estudante é fundamentalmente uma atitude de investigação: que pense por si mesmo e tome uma posição, ainda que só gradualmente o estudante aprenda a fazê-lo. Assim, o modo como se estuda filosofia é muito diferente do modo como se estuda história ou biologia. Estudar filosofia não é uma questão apenas de compreender e saber explicar os problemas, teorias e argumentos desenvolvidos pelos filósofos; estudar filosofia exige que se tenha uma atitude crítica e activa. Isto significa que não basta compreender os textos dos filósofos; é preciso saber discutir as ideias presentes nesses textos.
Dado que a filosofia se ocupa de problemas, teorias e argumentos, para saber discutir as ideias dos filósofos é necessário saber trabalhar correctamente sobre estes três aspectos da filosofia.

Almeida, Aires e Murcho, Desidério, Textos e Problemas de Filosofia
Didáctica Editora, Lisboa, 2006,pp 10-12

5
O que significa dizer que a filosofia é um estudo conceptual?

Ao contrário da física e da biologia, a filosofia não tem um carácter empí­rico; é um estudo conceptual. Neste aspecto, a filosofia é mais parecida com a matemática, que também não é uma disciplina empírica. Mas a filosofia dis­tingue-se da matemática por várias razões. Em primeiro lugar, não dispõe de métodos formais de demonstração, como a matemática; em segundo lugar, não se ocupa do tipo de problemas de que se ocupa a matemática. Mas de que tipo de problemas se ocupa afinal a filosofia?
O melhor é dar exemplos e apontar algumas das caracterís­ticas mais salientes dos problemas filosóficos típicos. Pensemos, por exemplo, em Deus. Os cristãos têm uma dada concepção de Deus, os muçulmanos ou­tra e os hindus outra ainda. E há muitas mais, tantas quantas as religiões. As religiões partem de certas verdades reveladas pelos seus profetas e inscritas nos seus livros sagrados; procuram descobrir a verdadeira natureza de Deus e encontrar o caminho da salvação. Mas nada disso são problemas filosóficos. A filosofia não cultiva dogmas, como a religião; a filosofia faz o contrário: procura destruir dogmas. Os cristãos, muçulmanos e hindus, partem do prin­cípio de que existe Deus. A filosofia pergunta: mas que razões temos para pen­sar que existe Deus? E, admitindo que existe um Deus sumamente bom e cria­dor, omnisciente e omnipotente, como se explica a existência de tanto sofrimento? A filosofia faz as perguntas difíceis que muitas pessoas gostariam de calar, e que efectivamente têm muitas vezes conseguido calar ao longo da infeliz história humana. Podemos dizer, poeticamente, que a filosofia é um grito de liberdade contra a opressão do dogma. E nisto, uma vez mais, a filo­sofia é semelhante à ciência. O que distingue os problemas da filosofia dos problemas da ciência é o seu carácter conceptual, a sua generalidade e a inexistência de fronteiras precisas. Os problemas da matemática são também bastante gerais e em grande medida conceptuais - mas têm fronteiras muito precisas. Não se pode determinar ma­tematicamente se os animais têm direitos; não se pode determinar matemati­camente se Deus existe - e nem sequer se pode determinar matematicamente se os números existem independentemente de nós. Qualquer problema com suficiente generalidade, de carácter conceptual e para a solução do qual não exista qualquer ciência pode ser um problema filosófico. Os problemas da ma­temática têm fronteiras muito claras: têm de poder ser resolvidos pelos méto­dos formais da matemática. Em filosofia, pelo contrário, não há métodos formais para resolver problemas.

Murcho,Desidério, A Natureza da Filosofia e o seu Ensino, plátano Editora.Lisboa,2002,pag.57
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A filosofia é o laboratório da mente
A filosofia, disse Platão, começa com o espanto, espanto com o universo, com o que ele contém e com o nosso lugar nele. O que é o universo? É somente composto por matéria ou também contem coisas imateriais como espíritos? Como o podemos saber? A experiência é a única fonte de conhecimentos ou há outras formas de conhecer? Porque estamos aqui? Fomos criados por Deus como parte de um plano divino ou o nosso surgimento deve-se a processos simplesmente naturais? Somos livres ou todas as nossas acções são determinadas por forças que escapam ao nosso controlo? Que obrigações temos para com os outros? Temos o dever de os ajudar ou a nossa única obrigação é não os prejudicar? Estas questões são ao mesmo tempo familiares e estranhas. Familiares porque já nos confrontámos com elas em algum momento das nossas vidas e estranhas porque não é claro como havemos de lhes responder. Ao contrário de muitas questões, não podem ser resolvidas mediante investigação científica.
Quer disso te apercebas ou não, assumes ou supões que certas respostas aquelas questões são verdadeiras. Estas crenças constituem a tua filosofia. A disciplina de filosofia examina criticamente tais crenças para determinar se são verdadeiras ou não. A palavra filosofia significa «amor da sabedoria». Deriva do grego philo que significa amor e sophia que significa sabedoria. O desejo de conhecer a verdade, o amor pelo saber é, contudo, somente um dos motivos que nos conduzem a filosofar. O desejo de viver uma vida boa e valiosa é outra das motivações para fazer filosofia. As acções baseiam-se em crenças e acções baseadas em crenças verdadeiras tem mais chances de serem bem sucedidas do que as apoiadas em crenças falsas.
O pensamento filosófico não tem nenhum valor se não for lógico. Para distinguires entre crenças filosóficas plausíveis e as que não o são, importa saberes a diferença entre argumentos correctos e incorrectos. Terás de aprender que tipos de argumentos os filósofos usam para tentar justificar as suas crenças ou teses e avaliar se os defendem bem. Chama-se a isso frequentar o laboratório da mente. Os problemas filosóficos são problemas conceptuais e a este tipo de problemas tenta-se responder no laboratório da mente, ou seja, mediante o pensamento crítico. Como se vêem os filósofos a si mesmos? Como indivíduos que debatem ideias, que se preocupam com questões conceptuais e não com questões empíricas, que procuram compreender e interpretar factos e não com descobri-los. Os filósofos não realizam experimentações, nem sondagens ou observações. Pensam.
O objecto do pensamento dos filósofos é as nossas crenças mais básicas, isto é, crenças cuja verdade ou falsidade determina a verdade ou falsidade de muitas outras crenças, menos básicas ou fundamentais. O modo como os filósofos pensam tem o nome de pensamento crítico, que é o método da filosofia.
Schick, Jr, Theodore e Vaughn, Lewis, Doing Philosophy, an introduction through thought experiments, McGraw- Hill, New York, 2002 pp 2 - 3.

7
O que é a filosofia?
As nossas capacidades analíticas estão muitas vezes já altamente desenvolvidas antes de termos aprendido muita coisa acerca do mundo, e por volta dos catorze anos muitas pessoas começam a pensar por si próprias em problemas filosóficos — sobre o que realmente existe, se nós podemos saber alguma coisa, se alguma coisa é realmente correcta ou errada, se a vida faz sentido, se a morte é o fim. Escreve-se acerca destes problemas desde há milhares de anos, mas a matéria-prima filosófica vem directamente do mundo e da nossa relação com ele, e não de escritos do passado. É por isso que continuam a surgir uma e outra vez na cabeça de pessoas que não leram nada acerca deles.
[...] Não discutirei os grandes escritos filosóficos do passado nem o contexto cultural desses escritos. O núcleo da filosofia reside em certas questões que o espírito reflexivo humano acha naturalmente enigmáticas, e a melhor maneira de começar o estudo da filosofia é pensar directamente sobre elas. Uma vez feito isso, encontramo-nos numa posição melhor para apreciar o trabalho de outras pessoas que tentaram solucionar os mesmos problemas.
A filosofia é diferente da ciência e da matemática. Ao contrário da ciência, não assenta em experimentações nem na observação, mas apenas no pensamento. E ao contrário da matemática não tem métodos formais de prova. A filosofia faz-se colocando questões, argumentando, ensaiando ideias e pensando em argumentos possíveis contra elas, e procurando saber como funcionam realmente os nossos conceitos.
A preocupação fundamental da filosofia é questionar e compreender ideias muito comuns que usamos todos os dias sem pensar nelas. Um historiador pode perguntar o que aconteceu em determinado momento do passado, mas um filósofo perguntará: «O que é o tempo?» Um matemático pode investigar as relações entre os números, mas um filósofo perguntará: «o que é um número?» Um físico perguntará o que constitui os átomos ou o que explica a gravidade, mas um filósofo irá perguntar como podemos saber que existe qualquer coisa fora das nossas mentes. Um psicólogo pode investigar como as crianças aprendem uma linguagem, mas um filósofo perguntará: «Que faz uma palavra significar qualquer coisa?» Qualquer pessoa pode perguntar se entrar num cinema sem pagar está errado, mas um filósofo perguntará: «O que torna uma acção boa ou má?»
Não poderíamos viver sem tomar como garantidas as ideias de tempo, número, conhecimento, linguagem, bem e mal, a maior parte do tempo; mas em filosofia investigamos essas mesmas coisas. O objectivo é levar o conhecimento do mundo e de nós um pouco mais longe. É óbvio que não é fácil. Quanto mais básicas são as ideias que tentamos investigar, menos instrumentos temos para nos ajudar. Não há muitas coisas que possamos assumir como verdadeiras ou tomar como garantidas. Por isso, a filosofia é uma actividade de certa forma vertiginosa, e poucos dos seus resultados ficam por desafiar por muito tempo.
NAGEL, Thomas. Que quer dizer tudo isto? Lisboa: Gradiva, 1997, pp 7 - 9


8
Para que serve a filosofia?
Mas será verdade que a filosofia não serve para nada? Claro que não. A fi­losofia, como a ciência, como a arte e como a religião, serve para alargar a nossa compreensão do mundo. Em particular, a filosofia oferece-nos uma compreensão da nossa estrutura conceptual mais básica, oferece-nos uma compreensão daqueles instrumentos que estamos habituados a usar para fazer ciência, para fazer religião e para fazer arte, assim como na nossa vida quoti­diana. A filosofia é difícil porque se ocupa de problemas tão básicos que pou­cos instrumentos restam para nos ajudarem no nosso estudo. Os matemáticos fazem maravilhas com os números; mas são incapazes de determinar a natu­reza última dos próprios números - têm de se limitar a usá-los, apesar de não saberem bem o que são. Todos nós sabemos pensar em termos de deveres, no dia-a-dia; mas a filosofia procura saber qual é a natureza desse pensamento ético que nos acompanha sem nós darmos muitas vezes por isso.
Para compreendermos melhor as dificuldades da filosofia é conveniente pensar numa metáfora. Imagine-se que estou a fazer uma casa. Preciso de usar várias ferramentas, como a pá de pedreiro, e vários materiais, como o cimento. Mas quando quero fazer uma pá de pedreiro, ou quando quero fazer o cimento, terei de usar outras ferramentas mais básicas. E depois terei de ter ferramen­tas para fazer as ferramentas com que faço a pá de pedreiro ou o cimento. E por aí fora. Experimente ir para uma ilha deserta fazer uma casa, sem levar nada da civilização. Será extremamente difícil: não terá ferramentas à sua dis­posição para fazer nada, excepto as suas mãos e a sua inteligência.
Num certo sentido, é esta a dificuldade da filosofia: estamos a tentar estu­dar as próprias ferramentas que usamos habitualmente para pensar. Por esse motivo, falta-nos ferramentas, falta-nos apoio. Mas não estamos completa­mente desamparados; temos a argumentação para nos ajudar. São os argu­mentos que fazem a diferença. São os argumentos que nos permitem ir mais longe na compreensão da nossa estrutura cognitiva mais profunda, que nos permitem compreender melhor os conceitos que usamos no pensamento quo­tidiano, científico, artístico e religioso.
É agora claro que a filosofia serve para alguma coisa. Serve para com­preendermos melhor a estrutura conceptual que usamos no dia-a-dia, na ciên­cia, nas artes e na religião. Claro que a filosofia não serve para distrair o «povo», como o futebol ou a tourada. Mas também a matemática não serve para isso, nem a religião, nem a arte em geral. Para que serve Os Maias, de Eça de Queirós? Para que serve a teoria da evolução de Darwin? Para que nos serve saber que só na nossa galáxia há tantas estrelas quantos os segundos que existem em três mil anos? Serve para sabermos mais sobre nós próprios e so­bre o universo em que habitamos. Tal como a filosofia.

Murcho, Desidério, A Natureza da Filosofia e o seu Ensino, Plátano Editora, Lisboa, 2002, pag. 65

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