sábado, 26 de fevereiro de 2011

KANT 7 - A RESPOSTA À QUESTÃO «O QUE DEVO FAZER?»


A resposta à questão: «O que devo fazer?». As realidades metafísicas são objecto de fé racional.
PRÓLOGO
Comecemos por relembrar algumas conclusões da Crítica da Razão Pura antes de ini­ciarmos o estudo da Crítica da Razão Prática.
Kant resume a sua reflexão na Crítica da Razão Pura dizendo numa frase célebre:
"Tive de suprimir o saber para dar lugar à crença (à fé racional)." Esta frase, à pri­meira vista ambígua, deve traduzir-se do seguinte modo: "Tive de negar que fosse possí­vel conhecer cientificamente as realidades metafísicas para dar lugar à fé racional nes­sas realidades."
O "saber"0' que é suprimido é a metafísica dogmática (a metafísica tradicional ou racionalista), ou seja, aquela disciplina que confiava cegamente no poder de conhecimento da razão pura e julgava (sem qualquer análise das suas possibilidades e limites) que as realida­des supra-sensíveis ou metafísicas eram cientificamente cognoscíveis. Kant ao investigar em que condições e em que limites é possível o conhecimento chega à conclusão de que a razão pura nada pode conhecer: a sua vocação metafísica não pode obter uma satis­fação de tipo científico.
A ciência está limitada ao plano dos fenómenos. Esta limitação não é uma supressão mas sim a única forma de o conhecimento humano ter direito ao título de conhecimento científico. Para lá do mundo dos fenómenos ("país do entendimento", que é a faculdade dos conhecimentos) há o abismo. A ciência, sobretudo a Física, mediante a investigação trans­cendental das fontes e condições do conhecimento, viu estabelecido um campo de acção do qual não pode sair sob pena de deixar de ser ciência. Quanto ao uso especulativo da razão, a aventura fora do domínio espácio-temporal equivale a uma desorientação, à deriva num oceano tempestuoso. É uma aventura que nunca chegará a bom termo. A metafísica dog­mática é que é suprimida. As suas pretensões são inadmissíveis. Contudo, o interesse me­tafísico, constitutivo do homem, permanece. Suprime-se a metafísica enquanto ciência mas conserva-se necessariamente o interesse pelos objectos que lhe são próprios: liberdade, imortalidade e Deus. Aboliu-se a pretensão de conhecer cientificamente esses objectos , mas não se anularam esses objectos nem o interesse por eles porque seria irracional e, a limite, negar o que mais profundamente define a natureza humana.
A reflexão de Kant sobre o conhecimento científico estava desde o início marcada por uma preocupação não científica ou teórica mas  moral ou prática: impedir a negação da liberdade. Para isso teve de limitar o campo de acção da ciência: se tudo fosse objecto de conhecimento científico transformaríamos toda a realidade em fenómenos submetidos a leis naturais ou necessárias e assim anularíamos a liberdade ou causalidade livre.
" É evidente que a ciência (representada em especial pela física) não é nem podia ser negada porque é um facto indesmentível. Numa passagem do prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant diz que teve de "suprimir o saber para dar lugar à crença" (fé racional).
Por "saber" não se pode entender a ciência mas as pretensões da metafísica dogmática, do racionalismo dog­mático, ao estatuto de ciência. O termo alemão que corresponde ao termo "ciência" é Wissenschaft e, para evi­tar erros e confusões, não surge na passagem indicada. Aparece o termo Wissen.
Como o domínio espácio-temporal é o plano da causalidade natural ou necessária, i. e.,, da necessidade, do determinismo, submeter toda a realidade a estes limites em que impera a legislação do entendimento seria anular a possibilidade da liberdade, poder de decidir, de produzir uma série de actos sem ser determinada necessariamente por causas anterio­res.
Ora, na hipótese de a liberdade ser um conceito contraditório, uma impossibilidade lógica, algo de impensável, a moral não teria qualquer sentido. Com efeito, diz Kant, "a moral é aquilo que se funda sobre a liberdade ou causalidade livre".
Portanto, a Crítica da Razão Pura Teórica teve como objectivo salvaguardar e legitimar em termos teóricos o uso prático da razão (a moral).
Postas estas considerações podemos antecipar, em termos gerais, o que vai acontecer na Crítica da Razão Prática.
Se uma razão pura teórica é, em certa medida, indesejável, já o mesmo não acontece com a razão pura prática. No plano da acção defende-se a realidade objectiva de uma razão pura prática, isto é, uma razão que por si só, independentemente da sensibilidade, pode de­terminar a vontade e as suas acções. No plano da acção, se queremos que esta tenha valor moral, temos de estabelecer que a vontade se deve determinar única e exclusivamente por princípios racionais. Portanto, aqui, ao contrário do que acontecia no plano do conheci­mento, defende-se a existência de uma razão que, independentemente da sensibilidade, constitui o princípio das acções da vontade.
Para Kant há um primado da razão prática sobre a razão teórica. A razão prática pode e deve ser pura, isto é, "não receber lições da experiência", e é mediante a razão pura prática que te­mos acesso ao incondicionado, ao plano metafísico que a razão especulativa ambicionava alcançar. As realidades metafísicas serão afirmadas a título de postulados morais, ou seja, justificar-se-á a nossa crença em Deus, liberdade e imortalidade com base numa argumenta­ção moral. Assim, elas adquirirão uma realidade objectiva moral que embora não corres­ponda a uma extensão do nosso conhecimento teórico nos obriga a admitir a existência de tais objectos. O fundamento de uma nova metafísica, não dogmática, encon­tra-se assim no plano prático ou moral. Não podendo ser uma ciência teórica, a metafísica transforma-se num conhecimento moral, isto é, numa certeza subjectiva com fundamento moral a que se dá o nome de fé racional.
1.A "EXPERIÊNCIA" DO DEVER: A LIBERDADE COMO OBJECTO DE FÉ RACIONAL
Sabemos que é impossível conhecer cientificamente as realidades metafísicas, ou seja, que não é possível demonstrar cientificamente a existência da liberdade, da imortalidade da alma e a existência de Deus. O que nos resta? Acreditar que essas realidades existem e jus­tificar ou encontrar razões que fundamentem essa crença. A nova metafísica a cuja constitui­ção iremos assistir será uma metafísica "dentro dos limites da razão", adequada ao que en­quanto homens está em nosso poder. As extravagantes e ilusórias pretensões de transformar a metafísica numa ciência foram rejeitadas para constituir uma metafísica credível, respeita­dora dos limites da nossa razão: esta limitar-se-á muito humildemente a justificar a fé na existência de realidades transcendentes. Afirmámos antes que, para Kant, a liberdade é o
fundamento da acção moral1". Portanto, a reflexão sobre a acção moral, sobre o uso prático da razão, partirá do esclarecimento da relação entre liberdade e moral.
A reflexão kantiana sobre a moral parte de um dado indiscutível: a presença na cons­ciência do ser racional de uma lei que se apresenta sob a forma de dever e a que dá o nome de lei moral. Ao contrário da lei natural que descreve como os seres naturais se comportam a lei moral não descreve o que acontece — não explica factos — mas diz-nos como deve­mos agir. É uma lei da razão e não uma lei do entendimento.
A lei moral é uma lei que devemos cumprir. A lei natural é uma lei que cumprimos sem poder deixar de o fazer. Cumprimo-la quer queiramos quer não. É precisamente o facto de a lei moral ser uma lei de dever que permite ao homem reconhecer-se como livre. Só se diz "deves!" a quem pode cumprir o dever ou fugir ao seu cumprimento. A "experiência" do dever — cumprido ou infringido — é inseparável da admissão da liberdade. Ter consciên­cia de que devo fazer isto ou aquilo é ter consciência de que posso (sou livre para) fazer isto ou aquilo, i. e., de que está dependente da minha vontade fazer ou não o que devo. Como diz Kant, a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade, ou seja, é aquilo que me permite tomar consciência de que sou livre.
Exemplo: um homem comete um roubo.
Esta acção pode ser explicada causalmente em termos espácio-temporais: a hereditarie­dade desse indivívuo, a sua educação deficiente, más companhias e outros factores. A sua acção pode ser considerada como um efeito destas relações. Mas, além de dizermos que a acção, a vontade, está causalmente determinada, também emitimos sobre ela um juízo de valor. Censuramos esse homem por ter agido como agiu, dizendo: "Não devia ter agido as­sim." Na base desta censura, deste "devia", está implícita a convicção de que o indivíduo referido podia ter agido tal como devia e não como o fez. A censura revela a referência a uma lei da razão (a lei moral) que devia ter sido cumprida. A vontade do homem que come­teu o roubo podia ter sido motivada pelo cumprimento da lei moral, racional, em vez de ser "determinada" por motivos empíricos (interesses monetários e outros), podia libertar-se destes e obedecer, por seu consentimento, àquela.
Como diz Kant: "Ele julga, pois, que pode fazer uma coisa porque tem consciência de que deve e reconhece assim em si a liberdade que, de outro modo, sem a lei moral, perma­neceria para ele desconhecida."
Por outro lado, se eu não for livre não faz sentido falar da presença da lei moral ou do dever na minha consciência. Em termos kantianos isso significa dizer que a liberdade é a ratio essendi, a razão de ser, o fundamento que torna inteligível a presença da lei moral em mim.
A consciência de que sou livre não é um conhecimento nem uma intuição mas simples­mente uma crença moralmente necessária. Uma "necessidade prática". A liberdade é uma afirmação que consiste numa fé racional. Não é objecto de explicação nem de intuição. Eu não sei se sou ou não livre mas sei que tenho de acreditar que sou livre. Porquê? Porque se não for livre não fará qualquer sentido a presença da lei moral na minha consciência.
01 Em sentido lato, acção que podemos julgar como boa ou má, como devida ou indevida.
Dizer que tenho de acreditar que sou livre é postular (exigir) a realidade da liberdade. Vemos assim que há uma razão ou justificação de ordem moral para a crença nessa reali­dade metafísica que é a liberdade. O argumento pode resumir-se do seguinte modo:
Se eu não for livre estarei simplesmente submetido a leis naturais.
                     Ora a consciência do dever, "a voz do dever”, é um facto..

Logo, embora não possa saber se sou livre, tenho de acreditar que o sou, por­que só há dever para quem é livre.
A existência da lei moral em nós exige que admitamos a liberdade como condição que torna possível a presença dessa lei na nossa consciência. A lei moral é um "facto racional", um dado indesmentível da nossa consciência como seres racionais. A liberdade é um postu­lado da nossa consciência moral, uma exigência desta, porque só o pressuposto de que somos livres torna compreensível a presença em nós da voz do dever (da lei moral).
Em termos rigorosos, diremos que a "experiência" do dever, o reconhecimento da pre­sença da lei moral em mim, me permite tomar consciência da necessidade de acreditar que sou livre. Assim, Kant justifica a crença na liberdade justificando por que temos de acredi­tar que somos livres. Justificada, com base numa razão de ordem moral, a crença na liber­dade, a reflexão kantiana encaminhar-se-á para a explicitação do que será acreditar racio­nalmente em Deus e na imortalidade da alma. Como os postulados da existência de Deus e da imortalidade da alma só se tornam compreensíveis mediante um aprofundamento dos conceitos da lei moral e de acção moral teremos de explicitá-los. Por momentos poremos entre parênteses as duas questões metafísicas para as reencontrarmos mais tarde já familia­rizados com as linhas gerais da moral kantiana.

SÍNTESE SOBRE O POSTULADO DA LIBERDADE
1     —A lei moral é um "facto racional", i. e., algo que está efectivamente presente na consciência do ser racional em geral e do homem em particular.
2     — Essa presença indubitável significa que na minha consciência enquanto ser racional se faz ouvir a "voz do dever": a lei moral é uma lei que me diz como devo agir.
3     — Só há dever para quem pode cumprir ou infringir: lei moral e liberdade são indissociáveis.
4     — Assim, embora não possa saber se sou livre tenho de acreditar que o sou, porque só assim a presença da lei moral na minha consciência tem sentido ou fun­damento. Tenho de acreditar que sou livre (exijo ou postulo a realidade da li­berdade) porque caso contrário a lei moral não será um "facto racional" (inteligível) mas sim absurdo.
5     — Mediante a reflexão sobre a "experiência" do dever, de realidade teoricamente possível (pensável), a liberdade transforma-se em realidade praticamente (mo­ralmente) necessária: sem a liberdade a lei moral não teria fundamento.
6     — Se a ciência era um facto cujas condições de possibilidade descobrimos nas estruturas a priori do sujeito epistémico, a lei moral é um facto cujas condições de possibilidade estão no sujeito não enquanto cognoscente mas como agente moral cuja liberdade aquele facto (a lei moral) exige para ter fundamento.
2. O QUE É AGIR MORALMENTE?
Habitualmente consideramos que agir moralmente é agir bem, é fazer o que devemos, cumprir o dever ou a lei moral. Para Kant, estas definições afiguram-se insuficientes, super­ficiais. Com efeito, podemos agir bem e, contudo, a nossa acção não ter valor propriamente moral. O que é para Kant uma acção moralmente válida? É uma acção determinada ou decidida por uma vontade puramente racional ou desinteressada. Assim, só podemos falar em termos correctos de uma acção moral se a vontade que decidiu realizá-la não for influenciada nessa decisão por nenhuma inclinação sensível, ou seja, por nenhum interesse, nenhuma paixão, nenhum afecto. Sem a pureza ou a racionalidade da vontade não há acção moral digna desse nome. Não basta cumprir o dever para agirmos moralmente: é preciso, para que isso aconteça, cumprir o dever pelo dever. O dever cumpre-se de uma forma mo­ralmente válida quando o motivo que, em determinado caso, inspira e anima a nossa acção é pura e simplesmente a vontade de cumprir o dever.

2.1.Acções por dever e acções conformes ao dever
Para esclarecer esta definição, Kant introduz uma distinção famosa: uma coisa é agir em conformidade com o dever; outra coisa bem diferente é agir por dever. Exemplo: se devolveu a carteira com receio de posteriormente ser descoberto ou para ser elogiado pela sua honestidade agiu em conformidade com o dever. Se devolveu a carteira simplesmente porque essa era a acção correcta agiu por dever, ou seja, só houve um motivo a influenciar a sua acção: fazer o que devia ser feito.Tudo depende do motivo ou da razão por que agiu honestamente.
Kant não admite que se cumpra o dever em virtude das desejáveis consequências que daí possam resultar. Seria deixar o cumprimento do dever ao sabor das circunstâncias, dos interesses do momento. Isso implicaria que quando não tivéssemos vantagem ou interesse em cumprir o dever não haveria razão alguma para o fazer.
As acções em conformidade com o dever não são acções contrárias ao dever. Contudo, nessas acções, para cumprir o dever precisamos de razões suplementares. Mais importante do que o cumprimento do dever é o nosso interesse pessoal.
As acções feitas por dever são acções em que o cumprimento do dever é um fim em si mesmo (cumprir o dever pelo dever). A vontade que decide agir por dever é a vontade para a qual agir correctamente é o único motivo na base da sua decisão. Dispensa razões suplementares, não age como diz o homem comum «com segundas intenções». Por outras palavras, perante uma regra ou norma moral como «Sê honesto», a vontade respeita-a sem qualquer outra intenção.
Do ponto de vista moral, entendido desta forma tão rigorosa, a única razão que existe para cumprir o dever é o respeito pelo dever. O motivo porque cumprimos o dever tem de ser absolutamente independente de interesses pessoais, de desejos – o desejo de agradar aos outros -, de sentimentos -a compaixão e o amor - e de traços de carácter como a generosidade. Consideremos o caso de uma pessoa que sempre que possível ajuda pessoas carenciadas. Age bem mas se o fizer porque lhe agrada ajudar os outros, porque é próprio do seu carácter ou porque lhe agrada o reconhecimento da sua bondade, a sua acção não é feita por dever. E isso, para Kant, apesar de não ser contrário ao dever, apesar de não ser censurável, não é moralmente valioso. Imagina, por outro lado, que o comerciante do nosso exemplo, age honestamente porque é próprio da sua natureza ou do seu carácter agir assim.
O que nos motiva quando cumprimos o dever é para a ética kantiana o problema decisivo. Não se trata simplesmente de cumprir o dever.
A lei moral diz-nos de forma muito geral o seguinte: «Deves em qualquer circunstância cumprir o dever pelo dever». Pensa em normas morais como «Não deve mentir»; «Não deves matar»; «Não deves roubar». A lei moral, segundo Kant, diz-nos como cumprir esses deveres, qual a forma correcta de os cumprir.
Tudo isto pode parecer exagerado e demasiado rigoroso. Não é suficiente cumprir o dever? Se não roubo, não minto e não mato, não é isso suficiente para agir moralmente bem? É preciso mais alguma coisa? Não há tanta gente neste mundo que age contrariamente ao dever? Não deveríamos contentar – nos com o facto de que há pessoas que fazem o que devem fazer seja qual for o motivo? Se pago os impostos que devo pagar, que importa saber se é por receio de ter problemas com o fisco? Kant discorda. O motivo da acção é decisivo porque caso contrário, daremos o mesmo valor moral a acções boas feitas por bons motivos e acções boas feitas por motivos errados.

2.3. Moralidade e direito (legalidade) em Kant.
Como já vimos, Kant distingue entre acções conformes ao dever e acções por dever.
A característica essencial das primeiras é a legalidade (são acções legais); a característica essencial das segundas é a moralidade (são acções morais).
Uma acção com valor legal é diferente de uma acção com valor moral. A legalidade
de uma acção consiste em agir devidamente mas não pura e simplesmente por dever: pago os impostos, ajo devidamente, não por absoluto respeito pela lei moral, mas para evitar pro­blemas com a "mão pesada da justiça". A minha acção é então determinada por princí­pios externos.
A moralidade de uma acção é incompatível com a presença, por mínima que seja, de qualquer inclinação ou interesse. Ajo por dever, ajo assim porque é meu dever agir assim e nada mais. Assim, a acção moral é determinada por um princípio interno: obedeço à lei racional da minha consciência, independentemente de qualquer coacção ou influência ex­terna. Obedeço à lei moral pela lei e não por causa de qualquer castigo externo.
Assim pode-se agir legalmente por interesse (desejo de lucro, de evitar represálias), mas agir moralmente e agir por interesse é contraditório. Com efeito, a moralidade de uma ac­ção consiste na pureza da intenção, na sua absoluta racionalidade e desinteresse.
Desde modo apercebemo-nos de que Kant distingue a Ética do Direito i. e., distingue entre lei moral e jurídica.
A lei moral é, por assim dizer, um princípio voluntário autónomo de conduta. A lei mo­ral não é uma ordem que exerça uma coacção externa. Com efeito, ela é a lei imanente à consciência moral do sujeito que age. Caso eu não cumpra a lei moral, i. e., se, em determi­nada situação, a minha acção não se inspirar única e simplesmente no respeito pela lei mo­ral mas se deixar influenciar por interesses e inclinações, não serei por isso levado a tribu­nal. Assim, por exemplo, posso pagar impostos para evitar problemas. Por não ter valor moral (a acção é realizada não por ser considerada boa em si mesma mas como meio para evitar aborrecimentos) essa acção não deixa de ter valor legal. Falando em termos exclusi­vamente morais, i. e., tendo em consideração simplesmente a intenção e não o resultado, a forma como se agiu e não o que se fez, eu sou o juiz e o réu.
Como diz V. Mathieu:
«E o inverso daquilo que acontece com as leis do Estado, que ordenam fazer isto ou aquilo, mas não podem obrigar a que seja feito com determinada intenção; ordenam, por exemplo, que se paguem os impostos e têm meios para obrigar a isso, mas (mesmo que, por vezes, o desejem) não têm meios para fazer com que esses actos sejam cumpridos mais com uma intenção do que com outra (digamos, com a intenção de servir o Estado ao invés de simplesmente fugir às sanções). E isso ocorre precisamente porque constituem uma legisla­ção externa. Se a vontade do indivíduo, em si mesma, não concorda com o que elas pedem, só podem ameaçar com certos castigos ou prometer-lhe certos prémios para obter o que de­sejam. Nesse caso, porém, a intenção do indivíduo não estará voltada directamente para aquilo que quer a lei, mas apenas para evitar o castigo e obter o prémio. E a lei jurídica, mesmo que se proponha a isso, não pode transformar essa intenção em outra, porque, nova­mente, não tem outro meio senão as ameaças ou promessas para se fazer valer.»
Citado por G. Realce e Dario Antiseri in História da Filosofia, Edições Paulistas, p. 185
2.4.O cumprimento do dever é um imperativo categórico
Deve ter reparado que a lei moral exige um respeito absoluto pelo dever e que se apresenta sob a forma de imperativo («Deves»). Pense nos seguintes imperativos:
a)     «Deves ser honesto porque a honestidade compensa»
b)     «Deves ser honesto!»
Em a) apresenta-se uma regra (deves ser honesto) e a razão pela qual ela deve ser seguida. O cumprimento da regra está associado a uma condição. «Se queres ser compensado deves ser honesto». Trata-se de um imperativo hipotético. Diz que só no caso de querermos ser compensados devemos ser honestos.
 O cumprimento do dever subordina-se a uma condição e por isso cumprindo o dever estamos, contudo, a fazê-lo por interesse. Em b) apresenta-se uma regra cujo cumprimento não depende de um interesse que assim queiramos satisfazer. Diz-nos que devemos ser honestos porque esse é o nosso dever e não porque é do nosso interesse. A esta regra incondicional que exige o cumprimento do dever sem qualquer outro motivo a não ser o respeito pelo dever dá Kant o nome de imperativo categórico. Este imperativo exige que ultrapassemos os nossos interesses e ajamos de forma desinteressada.
O imperativo categórico é uma obrigação absoluta e incondicional. Exige que a vontade seja exclusivamente motivada pela razão, que seja independente em relação a desejos, interesses e inclinações particulares. Ordena que uma acção seja realizada pelo seu valor intrínseco, que seja querida por ser boa em si e não por causa dos seus efeitos. «Diz a verdade!» é um exemplo de imperativo categórico.
O imperativo hipotético é uma obrigação condicional porque a realização da acção depende de desejarmos o que com ela podemos obter. Para Kant, as acções em conformidade com o dever são acções que encaram o cumprimento do dever como útil e não como um fim em si.Na sua perspectiva, todas as teorias éticas que encaram os deveres morais como obrigações dependentes das consequências transformam-nos em imperativos hipotéticos. Ora, a moralidade não pode para Kant depender de condições e circunstâncias que variam conforme as inclinações, desejos e interesses das pessoas. 
«Se queres ser respeitado, diz a verdade» é um exemplo de imperativo hipotético.

 Kant apresentou várias formulações do imperativo categórico para tentar explicar mais claramente o que é agir por dever e como posso eu saber que estou a agir por dever.

2.4.1 A fórmula da lei universal: como uma máxima se pode tornar lei universal

     A primeira formulação é de especial importância:

“Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal”
Uma outra formulação muito próxima desta diz: «Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza».

Uma máxima é moralmente aceitável se puder ser universalizada. O que quer isto dizer? Que deve poder valer para todas as pessoas transformando-se em princípio universal de conduta: «Todos devem agir assim».
Para esclarecer como a supracitada fórmula do imperativo categórico -conhecida por fórmula da lei universal – serve para testar a correcção moral das nossas máximas, o próprio Kant apresenta um exemplo: imagina que uma pessoa com problemas financeiros decide pedir dinheiro emprestado. Sabe que não pode devolver o dinheiro que lhe for emprestado mas prometê-lo - mentir – é a única forma de obter aquilo de que precisa. A máxima da acção poderia enunciar-se assim “Se isso servir os teus interesses, não devolvas dinheiro emprestado ao seu dono.” Poderia essa pessoa querer que ela fosse universalmente aceite, querer que todos fizessem o mesmo? Kant está a perguntar se é possível sem contradição querer tal estado de coisas. Ora a obediência universal a tal regra criaria um estado de coisas em que mesmo os seus interesses acabariam por ser lesados. A referida pessoa não pode querer sem contradição universalizar a excepção que abriu para si própria porque se tornará excepção para todos. Se todos nós fizéssemos promessas com a intenção de não as cumprir todos desconfiaríamos delas e o empréstimo de dinheiro baseado em promessas acabaria. A prática de fazer e de aceitar promessas desapareceria. A máxima referida auto-destrói-se ao ser universalizada porque ninguém poderá agir de acordo com ela.
A acção moralmente correcta é decidida pelo indivíduo quando adopta uma perspectiva universal. Como? Colocando de parte os seus interesses, a pessoa pensará como qualquer outra que também faça abstracção dos seus interesses adoptando, portanto, uma perspectiva universal.
Regressa ao exemplo dado e verifica que qualquer pessoa que abstrai dos seus interesses e pensa imparcialmente fará o mesmo: será honesta e sabendo que não o pode devolver não pedirá dinheiro emprestado. Aplica a mesma ideia a deveres morais comuns como “ “Paga o que deves”, “Sê leal”, “Não roubes” e verifica, com Kant, que só o interesse e parcialidade do agente pode levar à violação de tais regras ou deveres morais. Eliminada a parcialidade, pensamos segundo uma perspectiva universal e aprovamo-los.

2.4.2 A fórmula da humanidade: ao cumprir correctamente o dever respeitamo – nos e respeitamos os outros.
Continuando com o mesmo exemplo, pensa no modo como quem pede dinheiro emprestado sem intenção de o devolver está a tratar a pessoa que lhe empresta dinheiro. É evidente que está a tratá-la como um meio para resolver um problema e não como alguém que merece respeito, consideração. Pensa unicamente em utilizá-la para resolver uma situação financeira grave sem ter qualquer consideração pelos interesses próprios de quem se dispõe a ajudá-lo.
Sempre que fazemos da satisfação dos nossos interesses a finalidade única da nossa acção, não estamos a ser imparciais e a máxima que seguimos não pode ser universalizada. Assim sendo, estamos a usar os outros apenas como meios, simples instrumentos que utilizamos para nosso proveito.
Explicitando o conteúdo da primeira fórmula do imperativo categórico (a fórmula da lei universal), Kant resumiu esta ideia numa outra fórmula conhecida por «fórmula da humanidade»:
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio.
Segundo esta fórmula, cada ser humano é um fim em si e não um simples meio. Por isso, será moralmente errado instrumentalizar um ser humano, usá-lo como simples meio para alcançar um objectivo. Os seres humanos têm valor intrínseco, isto é, dignidade. Esta dignidade confere-lhes um valor absoluto, não devendo ser tratados como coisas ou objectos. O respeito pela sua dignidade é o respeito pela sua racionalidade. Devido à sua condição de ser racional o ser humano tem um valor incomparável (não comparável com o valor das coisas e dos animais que têm, para Kant, um valor meramente instrumental). Como ser racional nenhum ser humano vale mais do que outro. Uma vida humana não é mais valiosa do que outra nem várias vidas humanas valem mais do que uma. Devido a esta fórmula a ética kantiana é frequentemente denominada ética do respeito pelas pessoas.
Até agora sabemos que a «fórmula da humanidade» exige que o ser racional respeite os outros seres racionais e seja por eles respeitado.
Mas ela diz mais: diz que nenhum ser humano se deve tratar a si mesmo apenas como um meio. A prostituição, o masoquismo são exemplos de violação desta norma mas mesmo quando desrespeitamos directamente os direitos dos outros como no caso da escravatura, da violação, do roubo e da mentira estamos também a abdicar da nossa dignidade.
Para terminar esta análise outra nota importante: a fórmula não proíbe as pessoas de serem meios porque se o proibisse, proibiria qualquer prestação de serviços. A lei moral não proíbe um comerciante de usar os seus clientes para prosperar, mas se ele enganar nos preços e não devolver dinheiro esquecido pelos clientes, está a tratá-los apenas como meios, instrumentos ou objectos.
Esta é a mais famosa das fórmulas do imperativo categórico que aparece nas obras de Kant sobre ética. O seguinte texto explica que devemos a Kant a fundamentação propriamente filosó­fica do conceito de pessoa.
«A noção de pessoa está no centro do pensamento moral do Ocidente. Tem uma fonte histórica dupla: jurídica e religiosa. Por um lado tem a sua origem no direito romano e atribui-se a todo aquele que tem uma existência civil e direitos, ao contrário do escravo, que não tem direitos. Foram os filósofos estóicos que lhe conferiram um sentido moral: o termo 'pessoa' designava originariamente uma máscara, tendo depois tomado o sentido de papel numa peça de teatro e, por analogia, como é evidente em Epicteto e Marco Aurélio, a fun­ção que a Providência estabelece para cada homem durante a sua vida.
A outra fonte histórica é a tradição judaico-cristã. O Antigo Testamento prescreve o amor por todos os homens (inclusive os estrangeiros) e o socorro à viúva, ao órfão, ao opri­mido, ao pobre e ao esfomeado. O Novo Testamento retoma este dever de caridade univer­sal, mas vai mais longe, identificando o amor ao próximo com o amor de Deus e pregando o amor aos próprios inimigos. Além disso, afirma a igualdade das almas, coisa muito dife­rente da função exercida na cidade e da posição ocupada na hierarquia social. O que im­porta não é a aparência exterior, mas o interior, aquilo que constitui a alma da acção no sen­tido pleno da palavra. Daí a proibição de julgarmos os outros porque o futuro está aberto para o homem, para a mulher adúltera, para o filho pródigo. A humanidade é, para o cristia­nismo, a virtude essencial e traduz-se pelo espírito de simplicidade do qual as crianças são, ao longo dos Evangelhos, o símbolo.
Contudo, nos Evangelhos, a ideia de igualdade das pessoas apresenta-se sob a forma de predicação e de exortação: tratar todos os homens como humanos e iguais. É com Kant, no século xvm, que a pessoa se torna uma noção propriamente filosófica. É verdade que, educado no seio de uma família pertencente a uma seita protestante muito rigorosa (o pietismo), Kant meditou longamente sobre os grandes textos da Bíblia e do cristianismo, mas o seu objecto principal foi o de constituir uma moral racional, independente da religião. A pessoa é o homem enquanto ser racional. Em 1785, na obra Fundamentos da Metafísica dos Costumes Kant lança as bases de uma ética da pessoa e, no essencial, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, retoma esses princípios. Nessa obra Kant enun­cia pela primeira vez estes princípios fundamentais: o homem é um fim em si, é uma pes­soa e distingue-se das coisas. Para Kant considerar o homem como fim em si é considerar cada homem como uma pessoa, isto é, como um valor absoluto e não como um meio ao serviço de um fim.
Assim o ser racional identifica-se com a razão e, tal como esta, não deve estar subordi­nado a condições estranhas, a princípios externos.
Compreende-se assim que a pessoa se distingue de tudo o que, sob o nome de ne­cessidade e de inclinações, constitui aquilo a que se chama individualidade. Daí Kant tira a máxima do imperativo moral que deve ordenar a nossa conduta, quer individual quer colectiva, e que prescreve ao mesmo tempo o respeito por si e o respeito pelos outros.
A divisão social do trabalho implica que cada homem exerce uma função útil no seio da sociedade. A vida social funda-se numa reciprocidade de serviços e, neste sentido, todos os homens são meios ao serviço dos outros. Por exemplo, o médico chamado a meio da noite à cabeceira de um doente não tem o direito de recusar o seu socorro, mas não se torna por isso escravo do doente que o retribui. A sua dignidade de pessoa não é de modo algum afectada e assim deve ser para qualquer profissão, trabalho ou função. Ninguém tem o di­reito moral de impor a um homem uma tarefa que possa alienar o seu valor como ser hu­mano. Ninguém tem o direito moral de utilizar um ser humano para obter prazer ou satisfa­zer interesses. Ninguém tem o direito moral de se tratar a si próprio como uma coisa. É faltar ao respeito por si mesmo, tal como qualquer forma de injustiça ou de opressão é uma falta de respeito pelos outros.
Apercebemo-nos de que aquilo a que se convencionou chamar civilização ocidental se funda nesta ética da pessoa teorizada por Kant. Os fundamentos estabelecidos por Kant foram desenvolvidos pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e pela Declaração dos Direitos do Homem de 1948, continuando a ser um ideal a realizar plena­mente nos factos e nas instituições. Respeito e dignidade da pessoa humana, valor absoluto da pessoa, são expressões que se tornaram familiares e que Kant pela primeira vez expli­cou: a pessoa é o ser racional, é o ser livre.» [Louis-Marie Morfaux, L'Épreuve écrite de philosophie]



2.4.3 A autonomia da vontade
A mais importante novidade da ética kantiana consiste na afirmação de que nas decisões moralmente correctas nós somos legisladores criando regras válidas para todos os seres racionais. O agente moral é autónomo quando age por dever, ou seja, quando a sua máxima passa o teste do imperativo categórico e se torna regra segundo a qual todos podem agir. O agente autónomo aceita a lei moral não porque alguma autoridade externa o convenceu ou porque receia as consequências de não a aceitar. Aceita-a porque a lei é criada por si mesmo quando as escolhas morais são imparcial e desinteressadamente determinadas pela sua razão. É ao mesmo tempo legislador e sujeito dessa lei. A ética kantiana não admite autoridades morais externas e superiores à razão. A autonomia é a unidade entre o que a razão ordena e o que a vontade quer.

Já sabemos que, para Kant, são dois os critérios sem os quais não podemos atribuir moralidade às nossas acções: 1 - agirmos de acordo com uma máxima universal e 2 – agirmos encarando os outros como fins em si e não simplesmente como meios. Ao agir segundo uma máxima universal, estou a encarar o outro como um fim em si mesmo e, por sua vez, ao encarar o outro como um fim em si mesmo, estou a agir segundo uma máxima universal.
É isto o que a lei moral exige. Esta lei é a voz da razão no ser humano que em muitos casos ouve a voz dos seus interesses. A lei moral exige que sejamos racionais. Supõe que pago os impostos simplesmente porque considero ser esse o meu dever. Neste caso, a minha vontade sem ser influenciada por outra coisa (o medo de ser penalizado, a opinião dos outros, etc.) decide fazer o que deve fazer. Kant diz que esta vontade é autónoma. Cumpre o dever pelo dever. É uma vontade boa. A vontade autónoma é a que age por dever.
A heteronomia da vontade é a característica de uma vontade para a qual o cumprimento do dever não é motivo suficiente para agir. Tem de recorrer a outros motivos (o receio das consequências, o temor a Deus, etc.), a vontade submete-se a autoridades que não a razão. Por isso, a sua acção é heterónoma, incapaz de respeitar incondicionalmente o dever. A vontade heterónoma não age por dever. Quando cumpre o dever, cumpre-o por interesse. No melhor dos casos, age em conformidade com o dever. Todas as éticas de tipo consequencialista são, para Kant, heterónomas, reduzem a moralidade a um conjunto de imperativos hipotéticos.


A teoria kantiana permite distinguir os deveres morais das regras ditadas por quaisquer autoridades exteriores ao agente. O indivíduo tem na sua razão o critério dos deveres: pensando desinteressada e imparcialmente ele sabe o que é o dever. O conflito entre o dever, que é ordem que damos a nós mesmos (“Sê honesto!” ordena o comerciante a si mesmo), e os interesses que nos afastam do dever (“Mas os 50 € davam-me jeito…” hesita o comerciante), explica porque o dever parece ter uma origem numa autoridade exterior que nos contraria.
Quando decido independentemente de quaisquer interesses, isto é, quando sou imparcial e adopto uma perspectiva universal, obedeço a regras que criei ao mesmo tempo para mim e para todos os seres racionais. Uma vontade autónoma é uma vontade puramente racional, que faz sua uma lei da razão, lei presente na consciência de todos os seres racionais. Ao agir por dever obedeço à voz da minha razão e nada mais.

Poderá objectar: «Mas se eu, por exemplo, cumprir o dever de não mentir por considerar que essa é a vontade de Deus, como está expresso nos dez mandamentos, não estarei a agir de uma forma moralmente correcta?». Kant responderá que não. Nas questões morais a vontade do ser humano não é um meio para o cumprimento da vontade de um outro ser. Porquê depender de uma autoridade externa - ser heterónomo - para definir o dever moral se podemos ser autónomos, isto é, se podemos mediante máximas desinteressadas e imparciais estabelecer o que é dever para nós e para todos?

    2.4. A vontade autónoma é a vontade boa.
A boa vontade age por dever. A vontade heterónoma em Kant, age apenas em conformidade com o dever. Ao decidir-se por determinada acção a vontade autónoma não visa outro fim senão o respeito puro e simples pela lei moral. Sendo uma von­tade determinada por um imperativo categórico e não hipotético, o critério da sua moralidade não está no conteúdo do acto mas sim na sua forma não empiricamente condicionada. Deste modo, agindo por puro e simples respeito pela lei moral, a boa vontade é a vontade boa em si mesma. Não cumpre o dever porque isso é útil mas porque as­sim deve ser. Sendo uma vontade que age desinteressadamente ou que se determina a agir de uma forma puramente racional a boa vontade é puramente formal e não material. A bondade da vontade não deriva da bondade dos seus resultados. Com efeito, podemos querer fazer mal a uma pessoa e acabar involuntariamente por lhe fazer bem. E podemos querer fazer bem a uma pessoa e, involuntária ou inadvertidamente, acabar por lhe fazer mal. O que é importante do ponto de vista moral é o motivo ou a intenção do acto. Ter uma intenção correcta é o que torna uma vontade boa. Mas que tipo de intenção caracteriza uma boa vontade? A boa vontade é do ponto de vista moral a única coisa absolutamente boa. O que torna a vontade boa? A acção que pratica? Não. Os resultados que consegue? Não. A aptidão para alcançar bons resultados? Não, embora ser bem sucedida não seja, de modo algum, de desprezar. O que torna boa a vontade é a intenção que subjaz à sua acção. Supõe, mais uma vez, que devolves uma carteira que encontraste no refeitório da tua escola. Fizeste o que de acordo com as normas morais estabelecidas devias fazer. Mas é este facto suficiente para, segundo Kant, dizer que agiste de boa vontade? Não. Podes ter realizado essa acção por receio de ser descoberto, para não ficares de consciência pesada, e não por teres pensado que era essa a acção correcta. A tua intenção não foi propriamente cumprir o dever mas evitar problemas. Podemos ver que o que caracteriza a boa vontade é cumprir o dever sem outro motivo ou razão a não ser fazer o que é correcto. Dirá Kant que a boa vontade é a vontade que age com uma única intenção: cumprir o dever pelo dever.

Assim:
a)   A sua máxima pode transformar-se em princípio da acção de todo e qualquer
ser racional.
b)  Como o móbil da sua acção é puramente racional, a boa vontade consiste no
respeito pela racionalidade de todo e qualquer ser humano, nunca o conside­
rando simplesmente como meio para a realização de um interesse.
c)   Se respeitar puramente a lei suprema da razão corresponde ao respeito da au­
tonomia e dignidade de qualquer ser humano, isso nada mais significa do que
a autonomia da própria vontade. Tornando-se racional, a vontade boa não é
determinada por nada de exterior, dá a si mesma a lei da sua acção.
Fazendo sua a lei da razão, a boa vontade é uma vontade livre e racional que se eleva acima dos interesses e das inclinações.



5. O SOBERANO BEM: OS POSTULADOS DA IMORTALIDADE DA ALMA E DA EXISTÊNCIA DE DEUS
A lei moral apresenta-se ao homem sob a forma de imperativo categórico, exigindo a um ser que pode não a respeitar que aja pura e simplesmente por respeito por ela. Como a lei moral é uma lei da razão, o que ela de forma categoricamente imperativa ordena é que, ao agir, o homem estabeleça como motivo da sua conduta o respeito por aquilo que o define como homem: a racionalidade. É o respeito pela humanidade do homem que a lei moral exige quando se apresenta sob a forma de dever à vontade: se eu decido agir desta ou da­quela maneira devo fazê-lo assumindo a razão e nada mais como motivo da minha escolha. Só assim essa escolha, melhor dizendo, a máxima que orienta a minha acção, terá validade universal, ou seja, poderá ser pensada como devendo ser querida por todo o ser racional na minha situação.
A moralidade da acção é independente do fim a que a acção pode tender, melhor di­zendo, a acção moral só pode ser a acção boa em si mesma e não a acção que só é boa como meio para a realização de um fim. Em suma, só a acção puramente desinteressada, não determinada por um fim que lhe é exterior e para a realização do qual é meio ou instru­mento, pode ser moral.
Que assim seja não impede, contudo, que a lei moral aponte à vontade o dever de promover aquilo a que Kant chama o objecto total da vontade. Só que a moralidade da vontade não depende da realização desse objecto, denominado Soberano Bem. Já vimos que ela depende da forma que a acção assume: a acção é moral quando a vontade assume a forma da racionalidade e não se submete às inclinações da sensibilidade.
Kant não entende o Soberano Bem como o fundamento da determinação da vontade boa — só a lei moral pode ser esse fundamento — mas como o objecto total para o qual a von­tade boa naturalmente tende.
Mais precisamente o que entende Kant por Soberano Bem?
Kant distingue entre Soberano Bem e Bem supremo. O Soberano Bem é o Bem com­pleto, a totalidade composta por dois elementos: a virtude e a felicidade.
 A virtude é o Bem supremo, sendo a condição absoluta do outro termo do Soberano
Bem, pois só ela nos torna dignos de ser felizes. Sem a virtude, i. e., o esforço de aperfei­çoamento moral da vontade, o Soberano Bem não é possível: Porquê? Porque a felicidade de que aqui falamos não é uma felicidade qualquer. E a felicidade a que o ser virtuoso tem direito, a felicidade que ele merece.
No interior dessa totalidade denominada Soberano Bem, a Virtude é o Bem supremo, é condição incondicionada. Isto contudo não quer dizer que agir virtuosamente é ou implica ser feliz. A virtude não dá a felicidade mas unicamente nos torna dignos e merecedores desta. Deste modo, a virtude não é o Bem completo, embora seja a sua condição primeira. Ser condição não significa ser um meio. A Virtude não é um meio para um fim que seria a felicidade. Devemos ser virtuosos por respeito puro e simples pela lei moral e não porque a virtude nos faz merecer a felicidade. Já sabemos que a acção moral é aquela que tem o seu fim em si mesma. Se a virtude fosse um meio haveria contradição nos termos. Além disso não seria bem supremo ou incondicionado.
Postas estas considerações, vejamos a que propósito surgem os postulados da imortali­dade da alma e da existência de Deus, exigências da razão prática.

5.1. O postulado da imortalidade da alma
Já sabemos que Kant define a acção moralmente válida de uma maneira rigorosa e aus­tera; agir moralmente é agir de uma forma puramente racional. Seria a característica de uma vontade que suprimisse as inclinações sensíveis enquanto princípios determinantes ou coad­juvantes do agir, que "calasse" em absoluto a "voz" da sensibilidade. Tal conceito de acção moral conduz-nos, em última análise, à conclusão de que agir de uma forma moralmente válida implica ser moralmente perfeito. Tal como o conhecimento absoluto ou perfeita­mente acabado era o ideal que presidia profundamente à dinâmica cognitiva do entendi­mento, aqui é a pureza e a racionalidade absoluta do agir — a perfeição moral — que dina­mizam o nosso comportamento. Devemos procurar ser moralmente perfeitos. Que um ideal irrealizável — não podemos deixar de ser homens "demasiadamente humanos" — se torne um dever pode parecer desconcertante. Contudo, só assim, querendo mais do que pode ser, poderá o homem elevar-se, ser mais do que agora é, afastar-se o mais possível da mesqui­nhez, da crueldade, da sub-humanidade que frequentemente revela. Esse esforço de aperfei­çoamento moral não terá fim — dado que a perfeição não é própria do homem — e recebe o nome de virtude.
Postas estas considerações temos os elementos necessários para compreender o postu­lado da imortalidade da alma.
Por que razão temos de admitir ou afirmar a imortalidade da alma?
Que argumento moral nos leva a ter de acreditar na imortalidade, i. e., numa duração in­definida do nosso ser?
O seguinte argumento:
a)  A lei moral considera nosso dever agir de uma forma puramente racional ou absoluta­ mente desinteressada.
b) A pureza e a racionalidade absoluta da vontade são sinónimos de perfeição moral ou santidade.
c)  Logo a lei moral considera nosso dever procurar a perfeição moral.
d)A perfeição, seja ela qual for, é inalcançável, contudo devemos procurar alcançá-la.
e)  O que resulta daqui? Que, querendo cumprir o que a lei moral ordena, estamos desti­nados a um aperfeiçoamento moral indefinido, que nunca acabará (a virtude).
f)   Quem se esforça sem fim por ser moralmente perfeito, quem se esforça por cumprir absoluta e plenamente a lei moral, tem de durar indefinidamente.
g) A esta duração sem limites que é exigida para que seja possível falar de um aperfei­çoamento moral sem fim, dá Kant o nome de imortalidade da alma.
A imortalidade da alma é postulada com base num argumento moral, ou seja, para que aquilo que a lei moral ordena faça sentido: para que seja possível procurar cumprir o dever.
Se a razão teórica não demonstrou a imortalidade da alma, esclareceu contudo que a rea­lidade não se reduz à existência empírica ou sensível. A razão prática mostra que ela está inseparavelmente ligada à lei moral, ;'. e., tem um fundamento moral. Com efeito, é postu­lada para evitar que, logo à partida, o Soberano Bem seja impossível. Não se demonstra que a alma é imortal, mas sim por que razão temos de acreditar (fé da razão) na imortalidade da alma.
A imortalidade da alma é a duração indefinida sem a qual seria inconcebível o esforço de aperfeiçoamento indefinido daquele que procura cumprir a lei moral plenamente.
Explicando de outra forma:
«A 'perfeita adequação da vontade à lei moral' é a 'santidade'. Ora, como esta a) é exi­gida categoricamente e b) ninguém neste mundo pode concretizá-la, 'ela só poderá ser en­contrada num progresso ao infinito', ou seja, num progresso que cada vez mais se aproxime daquela 'adequação completa'. 'Mas tal progresso infinito só é possível pressupondo uma existência e uma personalidade do próprio ser racional que perdurem ao infinito — e isso tem o nome de imortalidade da alma.' Trata-se de um modo bastante insólito de conceber a imortalidade e a vida eterna (o paraíso): isto é, não como uma condição de certo modo está­tica mas precisamente como um incremento e um progresso infinitos. Para Kant, a imortali­dade e a outra vida constituem um aproximar-se-sempre-mais-da-santidade, um contínuo crescimento na direcção da santidade." [Giovanni Reale e Dario Antiseri.]
5.2. O postulado da existência de Deus
A virtude, o esforço de aperfeiçoamento moral em direcção à santidade, não dá por si nenhuma recompensa mas dá-nos o direito a uma recompensa, torna-nos merecedores dela. De que recompensa se trata? Da felicidade.
Sermos dignos da felicidade, mas não podermos ser felizes é moralmente absurdo. Saímos desse absurdo postulando (exigindo) um Deus, omnisciente e omnipotente, que proporcione a felicidade aos méritos e aos graus da virtude.
Por outras palavras, a lei moral ordena-me que seja virtuoso; este esforço de aperfeiçoa­mento moral torna-me digno da felicidade; precisamente por isso, é lícito postular a exis­tência de Deus.
Como define Kant a felicidade? Como "o estado do ser racional ao qual na totalidade da sua existência tudo acontece de acordo com o seu desejo ou vontade". A felicidade implica o acordo ou a harmonia da Natureza com a vontade ou os desejos do ser racional. Esta har­monia total e permanente não pode ser realizada pelo homem porque é um ser racional que pertence à Natureza e não é o seu autor. Não pode assim governá-la, dominá-la de forma a que a felicidade que o virtuoso merece seja possível. Para que o Soberano Bem seja realizá­vel, para que à virtude possa corresponder a felicidade, temos de postular a existência de uma causa da natureza, distinta dela e que tem o poder de a pôr de acordo com a vontade do ser moral. A essa causa chamamos Deus, ser moralmente perfeito e superiormente inteli­gente. Deus é a condição necessária para que o esforço de aperfeiçoamento moral do ho­mem possa ter a "recompensa" que merece e na proporção devida, se assim se pode falar.
Só Deus, ser moralmente perfeito e considerado criador do Universo, evita o absurdo imoral que seria ser digno da felicidade e não poder ser feliz. Vemos que a afirmação da existência de Deus torna possível esperar que a virtude seja recompensada. Ela é um postulado moral porque corresponde a uma exigência de justiça.
Deus tem de existir para que a esperança na recompensa legítima tenha funda­mento. Que o virtuoso mereça ser feliz e a felicidade seja impossível é injusto. Não pode­mos saber se Deus existe (a sua existência não é um facto). Como sem Deus não será possí­vel haver justiça moral, temos de acreditar que Deus existe.
Em suma, se a lei moral, ao estabelecer como objecto da vontade a realização do Soberano Bem, nos levou a exigir a imortalidade da alma como condição do seu principal elemento (o bem supremo), também nos conduziu a postular a existência de Deus como condição da união entre a virtude e a felicidade (bem condicionado) de que o esforço de aperfeiçoamento moral nos torna dignos.

SÍNTESE SOBRE O TEMA DO SOBERANO BEM
Embora a moralidade da vontade não dependa da realização do Soberano Bem, Kant define este como objecto total da vontade, cujas condições de possibilidade a lei moral exige. O conceito de Soberano Bem distingue-se do conceito de bem Supremo, porque é o bem completo, a representação da harmonia entre virtude e fe­licidade. Uma vez que a moralidade da acção é independente do seu objecto ou do seu resultado, Kant considera que no interior dessa totalidade que é o Bem completo, devemos dar o nome de bem supremo à virtude, isto é, ao esforço de total e intrín­seca conformidade da vontade com a lei moral. Como o esforço de aperfeiçoamento moral, que é a virtude, nos torna dignos da felicidade, pode dizer-se que a virtude é o bem supremo, porque sem ela o bem completo não seria possível. Assim, a virtude não é o bem completo, mas é a sua condição fundamental.
A felicidade será o bem condicionado porque só a virtude nos torna dignos e me­recedores dela. A felicidade não é um fim para o qual o esforço de aperfeiçoamento moral seja um meio, porque isso seria contraditório com a definição de acção moral, como acção boa em si mesma, isto é, cujo motivo puro e simples é o respeito pela lei moral. Se a felicidade fosse princípio de moralidade, não haveria moralidade, porque todos os imperativos seriam hipotéticos e todas as acções praticadas por interesse e dependentes do seu resultado objectivo. Assim, para termos direito à felicidade, esta não pode ser motivo fundamental das nossas decisões. A felicidade é aqui simplesmente uma necessidade que só o virtuoso tem o direito de reclamar. Ora, como é imoral merecer a felicidade e esta ser impossível ou inconcebível, pos­tula-se a existência de Deus, como ser que pode dar ao virtuoso aquilo que a sua consciência moral reclama. Assim, Deus tem de existir, para que o objecto completo da lei moral seja possível, mas a sua existência não é necessária para que as nossas acções sejam moralmente válidas.
    

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