sábado, 26 de fevereiro de 2011

KANT 1 - KANT E A METAFÍSICA


 KANT E A METAFÍSICA
Kant é um filósofo cujo pensamento foi por diversas vezes interpretado como o mais qualificado "certificado de óbito" que se passou à metafísica. Esta reputação está, contudo, longe da verdade. Como veremos. Kant irá suprimir um determinado tipo de metafísica mas não a metafísica.
O que é a metafísica? É uma disciplina cujos objectos de estudo são realidades que trans­cendem o campo da nossa experiência. Para Kant os problemas metafísicos são, fundamen­talmente, três: Deus. Imortalidade da alma e liberdade. Ao longo da sua história a metafí­sica tem sido a tentativa de responder cientificamente a estas três questões essenciais da razão humana.
Qual a situação da metafísica no tempo de Kant? O quadro não é famoso: ela é um campo de disputas constantes e intermináveis, nenhuma tese obtém unanimidade, reina a discórdia. Esta ausência de consenso não é, contudo, um dado recente mas sim uma cons­tante da própria história da metafísica. A aventura metafísica, desde os seus primórdios, tem sido a sucessão de "guerras internas" que bloquearam o seu desenvolvimento e arrui­naram o seu crédito junto da comunidade dos sábios e dos intelectuais. Contudo, nota ime­diatamente Kant, o descrédito e o desprezo de que são alvo os metafísicos não deve condu­zir-nos ao desprezo e à indiferença perante os problemas de que trata a metafísica: Deus, liberdade e imortalidade da alma. A metafísica apesar do descrédito em que caiu é um "des­tino singular da razão humana", corresponde a uma vocação natural, que não pode ser recu­sada. É próprio do homem procurar resposta para os grandes problemas metafísicos. A me­tafísica é uma necessidade humana que nunca desaparecerá.
Ao longo da sua história a metafísica tem tido uma pretensão fundamental: constituir-se como conhecimento científico de realidades que estão para lá da experiência. O que tem acontecido até agora? A metafísica, ao contrário da Física e da Matemática, não conseguiu encontrar o caminho do conhecimento seguro e digno de crédito. Então temos razões para duvidar da possibilidade de um conhecimento científico de realidades metafísicas. Até agora a metafísica não conseguiu constituir-se como ciência. Será que esse insucesso se deve à incapacidade dos pensadores que abordaram os problemas metafísicos ou será que isso se deve ao facto de a metafísica não poder ser mesmo uma ciência? A resposta de Kant é muito simples: a razão humana não pode evitar as questões metafísicas — são o seu des­tino — mas não é capaz de lhes dar uma resposta científica. Ao colocar a questão da cientificidade  da metafísica Kant não esconde que a resposta está dada: a metafísica não é uma ciência. Tatará simplesmente de mostrar por que razão ela não o pode ser. Assim iremos ver Kant perguntar em que condições é possível o conhecimento científico, ou seja, como conhecemos e o que podemos conhecer cientificamente. Definidas e explicitadas as condi­ções gerais do conhecimento científico demonstra-se ao mesmo tempo que não podemos conhecer realidades metafísicas.
A explicação essencial da falta de credibilidade da metafísica tem a ver com o facto de que os filósofos, que a pretenderam transformar numa ciência, usaram de uma forma dog­mática uma faculdade chamada razão. Confiaram cegamente nas capacidades desta e não investigaram se estava no poder da razão responder cientificamente às questões metafísicas. Se o tivessem feito descobririam que a solução científica desses problemas ultrapassa o po­der da razão.
Para evitar que cada qual fabrique uma metafísica a seu modo (para evitar, no fundo, que a filosofia seja um interminável campo de batalhas, em que todos se reconhecem vencedores e em que nada de positivo se produz) Kant vai criticar (analisar, determinar capacidades e limites) não este ou aquele filósofo mas sim a própria Razão. Daí a obra que descreve este "julgamento", a Crítica da Razão Pura, merecer o nome de "Autocrítica da Razão".
A análise dos poderes e limites da própria Razão vai determinar que ela é incapaz de resolver as questões metafísicas de forma científica e que só pode justificar a sua crença nas realidades metafísicas. Assim, julgava Kant, já não se poderá escrever metafí­sica ao gosto de cada filósofo mas sim de acordo com as capacidades da razão enquanto tal.
A atitude de Kant acerca da metafísica corresponde a um projecto de reabilitação. Não podemos ver em Kant o "coveiro" da metafísica: a negação da metafísica enquanto ciência não implica a negação da metafísica. Bem pelo contrário, só negando à metafísica um esta­tuto que ela não pode nem nunca poderá ter — o estatuto de ciência — é que poderemos constituir uma metafísica adequada às capacidades da razão humana e, portanto, legítima, digna de crédito. A filosofia kantiana tem uma intenção vincadamente metafísica: o seu ob­jectivo é o de reformar essa disciplina, dar-lhe credi­bilidade.

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