terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

DIÁLOGOS SOBRE A ÉTICA UTILITARISTA DE MILL


DIÁLOGOS SOBRE A ÉTICA UTILITARISTA DE JOHN STUART – MILL
DIÁLOGO 1
As consequências é que contam
ANA – Vamos à nossa conversa sobre Mill. Estás disposto a isso Júlio?
JÚLIO – Vamos a isso. Parece mais fácil do que Kant?
ANA – Parece mas as aparências podem iludir. Os filósofos são todos complicados.
JÚLIO – Como começaram?
ANA -  Começámos por esclarecer que a ética de Mill era consequencialista.Enquanto para Kant avaliar a moralidade das nossas acções era perguntar pela razão por que agimos de uma determinada forma, pela intenção com que fazemos aquilo que fazemos, (sendo a ação moral em Kant aquela que cumpre ou respeita o dever pelo próprio dever), em Mill, perguntar pelo valor moral da ação, é perguntar pelas suas consequências.
JÚLIO - Isso significa que …
ANA – Uma acção é moralmente boa ou má devido às suas consequências.
JÚLIO  – Se as consequências forem boas …
ANA– A acção é moralmente boa.
JÚLIO  – Se as consequências forem más ou não tão boas como podiam ser…
ANA – A acção não tem valor moral, ou melhor, não é moralmente correcta. Ás vezes, uma acção não é moralmente correcta por ter más consequências mas porque poderia ter tido melhores consequências.
JÚLIO – Mas atenção: isto só nos diz que a teoria de Mill é consequencialista. Falta saber porque tem o nome de utilitarismo.
ANA – Certo.Trata – se de saber o que significa mais precisamente dizer que uma acção tem boas ou más consequências?
JÚLIO – Só um momento. O telemóvel toca...
ANA – Atende.
JÚLIO – Lamento Ana mas vou ter de ir a casa. Uma inundação.
ANA – Deixaste alguma coisa aberta. Um descuido com más consequências e nada útil.
JÚLIO – Brinca, brinca. Inté.
ANA – Até breve.

DIÁLOGO 2
O princípio de utilidade
ANA – Então Júlio, novidades? Muitos estragos com a inundação?
JÚLIO – Nem por isso. Algumas coisas que não sabem nadar ficaram a nadar mas o importante é que a água não passou para a casa dos vizinhos. Só uma parte da escada ficou alagada.
ANA – Ainda bem. O teu descuido podia ter tido piores consequências.
JÚLIO – Foi a falar de consequências que nos despedimos. Continuemos.Segundo Kant testamos a correcção moral de uma ação baseando-nos no motivo ou intenção do agente e não nos resultados objectivos da acção. Muitas pessoas pensam que por mais indesejáveis que sejam os resultados de um acto a boa intenção do agente deve contar na avaliação do que fez. Mill discorda completamente: evitar que uma pessoa se afogue é sempre bom independentemente da motivação de quem salva. A motivação ou a intenção nada tem a ver com a moralidade da acção. Só tem a ver com o carácter do agente.
ANA – O nosso professor deu o seguinte exemplo: Durante a visita a um museu um dos visitantes percebe de que dois funcionários estão com dificuldades em mudar de lugar um quadro muito famoso e valioso. Imediatamente apressa-se a ajudá-los mas infelizmente tropeça num tapete e choca com um dos funcionários derrubando-o. O quadro cai com estrondo e fica muito danificado.
JÚLIO - O visitante agiu com boa intenção mas as consequências da acção foram desastrosas. Será que podemos considerar a sua ação moralmente correcta pois agiu com boa intenção ou devemos considerá-la como moralmente incorreta porque as consequências foram más?
ANA - A resposta de Mill seria que a ação foi moralmente incorrecta. Por quê? Porque segundo a sua perspectiva consequencialista um acto deve ser julgado pelas suas consequências. Se as consequências forem boas a acção é boa, se forem más a acção é má.
JÚLIO – E agora voltamos à questão em que ficámos: Mas o que significa mais precisamente dizer que uma acção tem boas ou más consequências?
ANA - Uma acção tem boas consequências se, dadas as alternativas disponíveis, dela resultar a maior felicidade, bem-estar ou prazer (ou pelo menos mais felicidade do que infelicidade) para o maior número possível de pessoas que por essa acção são afectadas. No exemplo dado um grande número de visitantes do museu será privado do prazer de contemplar o famoso quadro e o visitante solidário terá de responder pelos prejuízos involuntariamente causados.
JÚLIO - Então uma acção é boa se for útil.
ANA - Ser útil significa que dela resulta o maior bem – estar ou felicidade para o maior número de pessoas. Repara que no acidente que aconteceu no museu, apesar da boa intenção de quem quis ajudar, o resultado foi mau para muitas pessoas: a que vai ter de reparar parte dos estragos que causou, as pessoas que não poderão ver o quadro durante algum tempo e os responsáveis pelo museu que poderão ver diminuir o número de visitantes. Falta também saber se o quadro poderá ser restaurado.
JÚLIO - O meu irmão que não gosta de visitar museus não ficaria nada aborrecido com tudo isso.
ANA - Mill não está a pensar no teu irmão quando diz que a acção teve más consequências.
JÚLIO - O que eu penso é que Mill considera que a acção teve más consequências para várias pessoas mas não para as que não se interessam por museus. Essas não foram afectadas pelo que aconteceu.
ANA -  De acordo. Para Mill uma acção é boa se tiver boas consequências – ou as melhores consequências possíveis -  para o maior número possível de pessoas a quem ela diz respeito. Mill não diz todas as pessoas porque isso seria absurdo. As pessoas que como o irmão do Carlos não gostam de museus não vão lamentar o que aconteceu ao famoso quadro. Não são directa ou indirectamente afectadas, não sofrem o impacto que a desastrada intervenção do visitante teve.
JÚLIO - O que Mill está a dizer é que a utilidade é o que torna uma acção moralmente valiosa. O critério da moralidade de um acto é o princípio de utilidade. Este princípio é o teste da moralidade das acções.
ANA - Uma acção deve ser realizada se e se só dela resultar a máxima felicidade possível para as pessoas ou as partes que por ela são afectadas, ou que recebem directa ou indirectamente o impacto que a acção provoca.
JÚLIO - O princípio de utilidade é por isso conhecido também como princípio da maior felicidade. A ideia central do utilitarismo é a de que devemos agir de modo a que da nossa acção resulte a maior felicidade ou bem - estar possível para as pessoas por ela afectadas. Uma acção boa é a que é mais útil, ou seja, a que produz mais felicidade global ou, dadas as circunstâncias, menos infelicidade. Quando não é possível produzir felicidade ou prazer devemos tentar reduzir a infelicidade.
ANA – Parece fácil e simples.
JÚLIO – Mas o problema é aplicar este princípio. Nem sempre é fácil.
ANA – Contudo, o princípio de utilidade é, muitas vezes, um bom guia para as nossas decisões.
JÚLIO – Gostava que me esclarecesses.
ANA – Repara que eu não estou a afirmar que o princípio de utilidade é uma receita que aplicamos tranquilamente, sem qualquer angústia ou dúvidas. Agir seja com base em que princípio for, envolve frequentemente riscos.
JÚLIO – Agora é que preciso que me esclareças mesmo....
ANA – Vou tentar. Imagina que alguém tem uma doença que envolve a realização de uma complexa cirurgia.
Uma operação A permite a cura completa, mas apenas 30% dos pacientes a ela sujeitos sobrevivem; uma operação B permite a recuperação apenas parcial, a 50%, embora sem envolver quaisquer riscos para a vida dos pacientes. Imaginemos que um médico decide sujeitar um paciente à operação A e que este sobrevive. Terá o médico, de um ponto de vista utilitarista, agido bem?
JÚLIO – É para eu responder? Eu penso que, de acordo com o princípio da maior felicidade ou bem – estar possível, o médico, embora correndo mais riscos, agiu bem.
ANA – E porquê?
JÚLIO – Porque a cura completa do paciente corresponde ao máximo de bem estar possível (dado o paciente ter sobrevivido).  A operação A não devia ter sido realizada. O cálculo da utilidade esperada aconselha a preferir a operação B. E se a operação tivesse corrido mal? Utilitarista – O risco é a minha profissão.
ANA – Tomar decisões é quase sempre complicado.
JÚLIO – Por falar em complicações  tens de ir ao dentista como me disseste.
ANA – Espero que o dentista contribua para a minha felicidade e bem – estar.
JÚLIO – Tem calma. Por falar em felicidade vai ser esse o tema da nossa próxima conversa.
DIÁLOGO 3
O PRINCÍPIO DE UTILIDADE, A FELICIDADE GERAL E A FELICIDADE INDIVIDUAL.
ANA – Sabes Júlio, esta teoria  utilitarista não me agrada muito. Ter sempre de pensar na felicidade, no prazer ou no bem-estar do maior número possível de pessoas! Se o meu pai me dá um automóvel em vez de apoiar com esse dinheiro uma campanha contra o cancro, é justo dizer que ele agiu mal?
JÚLIO -  Segundo Mill sim. Se o teu pai desse dinheiro para essa luta contra o cancro muito mais pessoas seriam beneficiadas.
ANA – Mas ao comprar o carro o meu pai também beneficiaria muitas pessoas. Pagaria impostos, ajudaria os trabalhadores da empresa porque vendendo mais um carro a empresa teria mais lucro e não haveria demissões…
JÚLIO - Hum…Mas ajudar quem precisa de tratamento …. Há muito mais pessoas precisando de ajuda no tratamento contra o cancro do que a precisar de trabalho na empresa que fabricou e vendeu o carro.
ANA – Acho que a acção do meu pai não foi má, não teve más consequencias.
JÚLIO – Seria melhor ajudar os que sofrem daquela doença. Não foi a melhor acção possível. O teu pai poderia ter agido melhor. A boa ação é a melhor acção possível. A que beneficia o maior número possível de pessoas. O que custava ao teu pai dar o dinheiro do carro para a luta contra uma doença que mata tanta gente?De um ponto de vista utilitarista, dadas as circunstâncias e as alternativas disponíveis o teu pai não agiu correctamente.
ANA – É mais importante a felicidade dos outros do que a minha?
JÚLIO – Mill não diz isso.
ANA - Imagina que tenho muito dinheiro no banco. Devo, na perspectiva utilitarista, retirá – lo todo do banco e dá – lo a pessoas necessitadas contribuindo assim para uma maior felicidade geral?
JÚLIO – Seria absurdo. Mill nunca defendeu tal coisa. Se estivesse aqui, dir – te – ia o seguinte: «Quando se trata de decidir o que é moralmente correcto fazer, não deve ter em conta somente o seu bem-estar. Deve ponderar sobretudo que consequências a sua acção vai ter no bem-estar das pessoas por ela afectadas. A sua felicidade não conta mais do que a felicidade dessas outras pessoas. E quando me refiro a outras pessoas não abro excepções para as pessoas de que mais gosta, para familiares e amigos. Deve ser imparcial quando delibera o que vai fazer».
ANA – Então o utilitarismo não defende que que, em nome da felicidade geral, considerasse meu dever entrar em bancarrota.
JÚLIO - Na verdade, o utilitarismo não defende que deva abdicar de mim em nome da felicidade geral ou de um aumento de felicidade global. A acção correcta é sem dúvida a que maximiza a felicidade, a que contribui para a maior felicidade para todos, incluindo eu - o agente. A minha felicidade é tão importante como a felicidade dos outros – não é mais nem menos importante. Por outro lado, a relativa miséria em que eu ficaria – suponhamos que sem casa, sem dinheiro para comer – superaria a felicidade criada por dar a uma grande quantidade de pessoas uma pequena quantidade de dinheiro. Embora o utilitarismo afirme que alguns sacrifícios são moralmente exigidos não defende que devo sacrificar tudo pelos outros. Com efeito, se dou tudo não poderei continuar a ajudar os necessitados o que reduziria a quantidade global de felicidade.
ANA – HUM... Mesmo para defender o utilitarismo utiliza – se um critério utilitarista....
JÚLIO – Voltemos ao caso do carro que o teu pai te comprou. O teu pai devia ter pensado mais nos outros do que em ti. Precisavas mesmo do carro?
ANA – Dá imenso jeito. E não achas que o meu pai tem o direito de fazer o que bem entende com dinheiro que ganha e gasta? Mais uma teoria que me parece exagerada. Pensar sempre na felicidade geral. É de ficar doida. Que dizer dos meus projectos pessoais, dos meus gostos particulares e das minhas distracções, dos meus compromissos e obrigações familiares?
Supõe que gosto de ouvir música e dedico algum tempo por dia a esse prazer. Não poderia fazer outra coisa? É claro que sim. Poderia envolver-me em actividades que tendem a atenuar o sofrimento dos milhões de pessoas que neste mundo vivem miseravelmente. Haveria mais felicidade global. Ao ouvir música sou a única pessoa que está a beneficiar ou pelo menos há actividades alternativas que beneficiam mais pessoas. Imagina que vou ao cinema com o meu namorado. Devo perguntar se nesse momento não poderia desenvolver uma actividade mais útil para um maior número de pessoas? E se gosto de história desejando ser investigador devo renunciar e seguir uma carreira científica (médica, engenheira) porque o meu país precisa de profissionais qualificados nessa área? Seria mentalmente desgastante pensar sempre no bem - estar do todo e em beneficiar o maior número possível em tudo o que fazemos. Estariam arruinadas as nossas relações pessoais e as nossas obrigações familiares.

JÚLIO - Uma das principais críticas dos adversários do utilitarismo é a de que exige demasiado do agente moral. Mas Mill, pelo menos, nunca disse que sendo a promoção do bem – estar geral o nosso dever fundamental deveríamos promovê-lo a todo o custo. O que ele pensa é que há nos seres humanos uma forte inclinação para ser egoísta. Eu primeiro, depois eu… depois os meus familiares e amigos e só a seguir o resto. Parece aquela situação em que se pede muitíssimo para pelo menos conseguir alguma coisa.
ANA – Isso parece – me impossível, quase desumano. Nem toda a gente vale o mesmo para mim.
JÚLIO - Seja como for o que Mill quer dizer é que se  trata, através da educação segundo o princípio de utilidade, de abrir um espaço amplo para que a inclinação para o bem geral se sobreponha com frequência cada vez maior ao egoísmo. O princípio da maior felicidade em Mill exige que cada indivíduo se habitue a não separar a sua felicidade da felicidade geral sem deixar de ter projectos, interesses e vida pessoal.
ANA – Espero que seja assim porque caso contrário....
JÚLIO – O Mill conseguiu irritar – te!
ANA – De que maneira... Já não chegava o Kant com a mania das mãos puras e limpas!
JÚLIO – Que te agrade ou não, Mill não entende por felicidade, apenas a felicidade do agente, mas a felicidade para o maior número possível de pessoas. Para que uma acção tenha valor moral, não é suficiente que a felicidade seja a do agente, mas é necessário que seja a felicidade das pessoas afectadas pela acção realizada.
Não há mal em as consequências dos teus actos satisfazerem os teus interesses desde que: a) não tenhas em vista só os teus interesses; b) Penses primeiro no bem – estar da maioria das pessoas a quem a acção pode mudar a sua situação.

ANA – Mas ser egoísta, pensar em mim e não nos outros, é errado?

JÚLIO – Segundo Mill é errado.E segundo Kant também. Para Kant, é moralmente errado que o agente abra excepções para si próprio e faça depender o cumprimento do dever da satisfação dos seus interesses e desejos. A imparcialidade é a palavra de ordem. Para Mill ter em conta o interesse geral e colocá-lo acima dos interesses exclusivos do próprio agente quando se decide o que fazer é condição fundamental da moralidade de um acto.

ANA – Não conseguimos ser assim.

JÚLIO – Não sei se somos todos egoístas mas o que estes dois autores nos dizem é que é moralmente errado ser egoísta e defender que todas as pessoas devem agir sempre em função dos seus próprios interesses. Devemos lutar contra uma fácil tendência humana: sermos egoístas. O egoísmo não pode estar na base da moral. A razão é muito simples: apenas um egoísta estaria interessado numa moral baseada no egoísmo; mas, na verdade, também não é do interesse do egoísta que os outros sejam como ele. Não é do interesse do egoísta transformar a sua atitude numa regra universal, ou seja, que todos seguissem.
ANA – De acordo. Mas parece – me que subtilmente se passa de um extremo a outro. Mas vamos lá recapitular para quem vai ler estes materiais de apoio.
JÚLIO – Estás a falar de quê?
ANA – Nada. Esquece. O imperativo moral utilitarista é este: Age sempre se maneira a produzir a maior quantidade possível de bem estar geral para o mundo (para todos os envolvidos).
JÚLIO - O objectivo da moral é contribuir para transformar o mundo num lugar melhor.A moralidade é acerca de como produzir as melhores consequências, e não acerca de boas intenções. As intenções apenas contam porque revelam o que queremos fazer. A exigência de imparcialidade e de universalidade está presente na moral utilitarista.
O bem-estar a promover não é apenas o do agente mas o de todos os envolvidos.
Uma consideração imparcial dos interesses implica que o modo de o bem estar ser distribuído não é importante em si mesmo.
Se ao optar por uma situação A, três pessoas ficam satisfeitas e duas não, e se ao optar por B apenas duas pessoas ficam satisfeitas e três não, o princípio utilitarista obriga a optar por A mesmo que o agente esteja entre as pessoas insatisfeitas.

 No fundo, o utilitarismo diz-nos apenas o seguinte: avalia cada situação com toda a imparcialidade e escolhe a alternativa que mais benefícios traga a todos os que serão afectados pelas tuas acções.
ANA – Muito bem, não me parece um mau programa. Mas a estrita imparcialidade e a insistência nas consequências são discutíveis, muito discutíveis.
JÚLIO – Então discute.
ANA - Imagina que prometeste acompanhar a tua namorada a uma clínica onde ela irá realizar exames médicos. Para esse mesmo dia recebes um convite de um amigo para assistir a um concerto de beneficência a favor de uma instituição de acolhimento de menores que passa por graves dificuldades financeiras. Deves acompanhar a tua namorada ou ir ao concerto? Como para um utilitarista o que conta são as consequências e que de uma acção resulte o melhor estado de coisas a resposta seria ir ao concerto. Da acção de ir ao concerto resultará mais felicidade ou bem – estar no mundo – um melhor estado de coisas – do que da acção de acompanhar a sua namorada à clínica.
JÚLIO – Aonde queres chegar com esse exemplo?
ANA - Habitualmente diríamos que tinhas a obrigação de acompanhar a tua namorada à clínica porque o prometeste. Estás vinculado a essa promessa e, embora por vezes, por uma questão de prioridade tenhamos de ignorar algumas obrigações, as promessas são para cumprir.
JÚLIO - Segundo os críticos, o utilitarismo não convive bem com a ideia de obrigação moral ou de promessas porque estas remetem para o passado – para o que se prometeu ou para obrigações que contraímos. Uma doutrina que avalia as acções com base nas suas consequências, baseando – se no que delas irá eventualmente resultar, centra – se no futuro.
ANA - O problema do utilitarismo é o de que parece tornar incompreensível a noção de obrigação moral como algo que vincula agora um agente a algo não por causa das suas consequências mas simplesmente porque de facto temos obrigações morais.
JÚLIO – Mas também te digo que podia dar o dinheiro do ingresso no concerto, não ir ao concerto e acompanhar a minha namorada à clínica.
ANA – Para ficares bem com a tua consciência...
JÚLIO – Era uma solução.
ANA – A imparcialidade transforma – nos em máquinas de calcular as consequências das nossas acções. Desvaloriza determinados laços afectivos e obrigações que são importantes para a generalidade das pessoas. Falo das relações e obrigações que temos a respeito dos nossos familiares e amigos.
JÚLIO – Tenho uma certa dificuldade em não te dar razão.
ANA – Queres um exemplo? Supõe que aconteceu uma fuga de gás num prédio. Após uma explosão desencadeia – se um incêndio. Várias pessoas fogem a tempo de salvarem as suas vidas mas duas não o conseguem. Tendo assistido aos factos ficas saber que as duas pessoas são a tua mãe e um famoso cientista que está prestes  a descobrir a cura para uma doença muito grave. Só há tempo para salvar uma das pessoas em perigo. Só tu as podes  salvar e tens coragem para o fazer. Quem deves salvar?
JÚLIO - Na perspectiva utilitarista devemos ser imparciais para criar um estado de coisas melhor no mundo. Nesta ordem de ideias, entre uma mulher comum – é assim que a devemos considerar se formos imparciais - e o brilhante cientista parece claro que devemos salvar o cientista. Porquê? Não propriamente por já ter salvo a vida de muitas pessoas mas porque continuará com a sua descoberta a fazer o mesmo se sobreviver. Salvar o cientista produzirá um melhor estado de coisas – maximizará o bem – do que salvar a idosa senhora.
ANA – Só que a idosa senhora é a tua mãe que te criou, sofreu e se sacrificou por ti e que é uma pessoa especial, muito especial porque nela e com ela viveste experiências que não vives com mais ninguém. Sê utilitarista a ver se consegues!
JÚLIO – É um exemplo extremo, exagerado.
ANA – Pode acontecer – te. Nunca se sabe. O que eu quero salientar é o seguinte: esta teoria  desvaloriza estes laços e obrigações,  não lhes atribui significado moral relevante. Será possível abstrairmos, colocar de parte as exigências da nossa vida pessoal, o amor e o afecto quando tomamos decisões morais? Não é exigir demais? Se a imparcialidade está ligada à justiça, ao tratamento justo das pessoas e dos animais não – humanos não estaremos neste caso a ser demasiadamente imparciais, frios e cruéis, ao ponto de desprezarmos pessoas importantes e a quem muito devemos? Há pessoas que podem dizer muito à humanidade mas há outras que nos dizem muito mais a nós.
JÚLIO - Parece indiscutível que retirar certos afectos do centro da vida moral é exigir demais de seres que neles encontram sentido para as suas vidas.  Reconheço que tens razão embora salvaguarde a hipótese de estarmos a ser injustos com o Mill, ou seja, podemos não o estar a compreender bem.
ANA – Caso assim seja, as minhas desculpas mas se o estamos a compreender o problema é dele, melhor, da teoria utilitarista.

DIÁLOGO 4
O princípio de utilidade e as normas morais convencionais
JÚLIO - O utilitarismo é uma teoria bastante simples. No fundo, diz-nos apenas o seguinte: avalia cada situação com toda a imparcialidade e escolhe a alternativa que mais benefícios traga a todos os que serão afectados pelas tuas acções.
ANA - O utilitarismo é simples apenas na aparência. Aplicar o seu princípio na prática pode revelar-se extremamente complicado.
JÚLIO - Porquê complicado?
ANA - O utilitarismo implica que estejamos permanentemente a fazer cálculos complexos e a prever de cada vez que é necessário tomar uma decisão qual das opções trará mais benefícios prováveis e menos custos. Mas isto seria impossível.
JÚLIO - Confesso que não tinha pensado nisso. Será assim tão difícil?
ANA - É inevitável. Mas ainda que conseguíssemos fazer os cálculos necessários, viver numa sociedade utilitarista é pouco seguro.
JÚLIO - Não vejo porquê.
ANA - É que um utilitarista não hesitaria em mentir, roubar ou matar se fazê-lo, consideradas as coisas imparcialmente, tivesse melhores consequências do que prejuízos para a sociedade. Regras como “não devemos matar pessoas inocentes” não têm para ele qualquer importância. Tudo o que conta são as conveniências que cada situação nos impõe.
JÚLIO - Será que na ética utilitarista não há lugar para as regras morais comuns?Será que vale tudo desde que os fins justifiquem os meios?
ANA – O que é isso de regras morais comuns?
JÚLIO – São regras que nos proibem de matar inocentes, roubar e mentir, por exemplo. São regras partilhadas por uma certa comunidade de indivíduos e que devem ser cumpridas.
ANA – Para o utilitarismo a regra ou o princípio moral fundamental – e que está acima de todos os outros – é o princípio de utilidade. Quando duas normas morais entram em conflito, quando não sabemos qual devemos seguir como no caso de conflitos morais mais ou menos dramáticos, é ao princípio de utilidade que devemos recorrer. Além disso, e não menos importante, o princípio de utilidade é que justifica e dá sentido às normas morais convencionais. Devemos segui – las quando as consequências são boas.
JÚLIO - As normas morais como as que proíbem o roubo, o assassinato ou a mentira têm, para Mill, muito valor. As normas morais comuns estão em vigor em muitas sociedades por alguma razão. Resistiram à prova do tempo e em muitas situações fazemos bem em segui-las nas nossas decisões. Vendo bem as coisas, as regras da moral convencional que gozam de maior prestígio devem tal reputação ao facto de terem contribuído para a promoção do bem-estar da humanidade e da convivência harmoniosa, isto é, têm cumprido o critério utilitarista. Dizer a verdade é um acto normalmente mais útil do que prejudicial e por isso a norma «Não deve mentir» sobreviveu ao teste do tempo.
ANA - Contudo, não devem ser seguidas cegamente. Nas nossas decisões morais devemos ser guiados pelo princípio de utilidade e não pelas normas ou convenções socialmente estabelecidas. Para o utilitarista, as acções são moralmente correctas ou incorrectas conforme as consequências: se promovem imparcialmente o bem-estar, são boas. Isto quer dizer que não há acções intrinsecamente boas. Só as consequências as tornam boas ou más. Assim sendo, de acordo com o princípio de utilidade, não há, para o utilitarista, deveres que devam ser respeitados em todas as circunstâncias.
JÚLIO – Aqui Mill é bem diferente de Kant. A exigência de maximizar sempre o bem estar contraria a tese deontológica de que as nossas acções têm como limite último o respeito pelos direitos invioláveis das pessoas.
ANA – Percebo o que queres dizer. O lançamento da bomba atómica em Hiroxima tinha melhores consequências do que a continuação da guerra (a decisão de Truman maximizou o bem); mas para um deontologista, fazê-lo constituiu uma violação do direito à vida de pessoas inocentes que nunca devia ter sido posto em causa.
JÚLIO - Para um deontologista, maximizar sempre o bem não é obrigatório e, em certas circunstâncias, é inadmissível e não se pode permitir. Para a ética deontologista de Kant, o nosso dever fundamental é respeitar os direitos básicos das pessoas. Por isso, recebe também o nome de ética do respeito pelas pessoas ou pela pessoa humana.
ANA – Certo. Mas gostava de voltar atrás. Parece que ficou subentendido que apesar de o príncípio de utilidade ser a regra fundamental, nem sempre temos de o aplicar para tomar decisões.
JÚLIO – É verdade. Por vezes tomamos decisões de acordo com as regras da moral comum.
ANA – Quer dizer que nos apoiamos  nas nossas intuições sobre o que está certo e o que está errado.
JÚLIO - Quando nos limitarmos a seguir as nossas intuições básicas não necessitamos de fazer qualquer género complicado de cálculo. E também não precisamos de recorrer ao princípio da utilidade. Por vezes, parece tão evidente que certos actos são errados ou certos que não é preciso recorrer a esse princípio. É o caso de mentir, de roubar e de matar. A experiência acumulada pelos seres humanos mostrou que na maioria dos casos são actos prejudiciais.
ANA – Então o princípio de utilidade não é uma espécie de polícia que constantemente vigia e orienta as nossas decisões. Quando é que o usamos?
JÚLIO – Mill considera que a moralidade não pode ser simplesmente seguir regras estabelecidas. Temos de ter espírito crítico e, de acordo com as situações, ponderar bem o que fazer. Ora há muitas situações morais que ou são muito complicadas ou nos suscitam dúvidas sobre o que fazer. Truman viveu concerteza uma experiência moral complicada. Deve ter pensado: «Vou matar tanta gente ou deixar morrer ainda mais? Será que não me estou a enganar?».
ANA – No seu caso, as regras morais comuns, não lhe permitiam resolver o dilema.
JÚLIO – A sua reflexão moral teve que se basear mais do que nas suas intuições morais. Teve de seguir um princípio que permite avaliá – las.
ANA - Recorremos ao princípio de utilidade  - elevamo – nos acima da moral comum, quando as regras éticas comuns não nos permitem saber como agir, por vezes porque entram em conflito, ou quando precisamos de avaliar se uma regra produz realmente mais benefícios que prejuízos.
JÚLIO – Falaste de conflito....
ANA - Um caso em que as regras éticas comuns não nos permitem saber como agir, é o seguinte: um familiar próximo necessita de um remédio urgente; a única farmácia a uma distância útil está fechada e o farmacêutico encontra-se de férias. Que fazer? As regras comuns impedem entrar na farmácia sem autorização; e obrigam a fazer tudo para salvar quem tem a vida em perigo. 
Como decidir? Qual das duas acções deve ser a preferida? Aqui entra o princípio de utilidade.
JÚLIO – Ora aqui está um princípio que pode promover e justificar a desobediência civil.
ANA – Ah?
JÚLIO – Pensa no caso de direitos cívicos. Há um século atrás  era proibido que as mulheres votassem. Segundo o critério da utilidade – a maior felicidade para o maior número possível – qual devia ser a nossa atitude? Respeitar a regra sem contestação? Ou usar o princípio da utilidade para a pôr em causa devido ao prejuízo que a sua observância implicava?  
ANA – Mill era a favor do direito das mulheres ao voto.
JÚLIO – Certo. E não o era porque fosse um direito bom em si mesmo mas por razões utilitaristas. A sociedade perdia mais do que ganhava com essa situação que impedia as mulheres de participarem no destino político de uma nação.
ANA  - Mas como disseste não é só em casos difíceis de conflito moral que o princípio de utilidade é usado.
JÚLIO – Também a ele devemos recorrer quando precisamos de avaliar se uma regra produz realmente mais benefícios que prejuízos. Por exemplo, Não é claro que quebrar promessas traga mais benefícios que prejuízos. Sabemos que quem tiver conhecimento da quebra da promessa deixará de confiar no incumpridor. Esta falta de confiança impedirá futuras acções conjuntas. O respeito pela palavra dada contribui para a sã convivência entre as pessoas e para o bem estar geral.

ANA – Apesar de tudo, o princípio utilitarista é objecto de uma crítica poderosa. Parece que justifica acções profundamente imorais.  Mas há casos em que parece acontecer isso. Nos apontamentos que li encontrei este caso:
José, um cientista botânico de visita à América do Sul, chega a uma aldeia onde Pedro, um militar se prepara para ordenar a execução de vinte índios. A população da aldeia tem protestado frequentemente contra a política do governo. Para aterrorizar a população da aldeia Pedro recebeu ordens para escolher vinte pessoas e fuzilá-las. Trata-se de pessoas inocentes. José sente revolta perante a situação e dá sinais do seu descontentamento. Apercebendo-se disso, Pedro decide dar-lhe a possibilidade de intervir. Propõe-lhe que se matar um dos vinte índios, salvará a vida dos outros dezanove. Se recusar esta proposta as vinte pessoas inocentes morrerão. José, com muito desconforto, aceita a proposta.
JÚLIO -  É fácil ver qual seria a resposta de um utilitarista. Entre a acção de matar uma pessoa e a acção de matar trinta, a acção que evita a dor e o sofrimento do maior número de pessoas é a primeira, a de matar apenas uma pessoa. Logo, para o defensor do utilitarismo, entre estas duas possibilidades de acção, aquela que para si é a mais moralmente correcta é a que conduz à morte de um indivíduo. 
Este exemplo, apresentado por Bernard Williams, um crítico do utilitarismo, é um exemplo daquilo a que alguns filósofos chamam experiência mental. Uma experiência mental é uma situação imaginária cujo objectivo é determinar se uma tese ou conclusão é verdadeira ou razoável. Através desta técnica testamos teses ou teorias colocando a questão «E se...» e seguindo as suas consequências lógicas. Verificamos deste modo se uma teoria é sustentável.
ANA - Para Kant, isto seria moralmente repugnante. Kant considera que é nossa obrigação moral respeitar cada ser humano nunca fazendo dele um meio ao serviço dos nossos interesses. Exprimiu essa convicção na seguinte fórmula:
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio.
Segundo esta fórmula, cada ser humano é um fim em si e não um simples meio. Por isso, será moralmente errado instrumentalizar um ser humano, usá-lo como simples meio para alcançar um objectivo. Os seres humanos têm valor intrínseco, isto é, dignidade. Esta dignidade confere-lhes um valor absoluto, não devendo ser tratados como coisas ou objectos.O José usou uma pessoa para salvar 19.Segundo Kant agiu mal. Agiu mal porque matou uma pessoa. Ponto.
JÚLIO – Pensa um pouco. O que queriaS que fizesse? Se não matasse uma deixava morrer dezanove. O que é mais moralmente correcto? Matar uma pessoa ou deixar que morram 19?
ANA -  Há uma grande diferença entre matar e deixar morrer. Eu sentir – me – ia mais culpada se matasse uma pessoa do que se deixasse morrer 19.
JÚLIO -  Isso para Mill não interessa. O que importa é o resultado da acção e não o que sentes ou o que és. Olhemos objectivamente. O que é pior? Morrer uma pessoa ou 19?
ANA – Estás a dizer que os fins justificam os meios. Se achas bom esse princípio, vale tudo. Eu considero mais satisfatório um princípio como  o de Kant (nunca trates os outros como objectos ou simples meios) do que o de Mill. O princípio da maior felicidade para o maior número leva a que os fins justifiquem os meios e que acções imorais como matar um inocente sejam aprovadas.
JÚLIO  – Mill não diz que os meios justificam sempre os fins. Uma pessoa pode desejar dar uma Play station aos seus três filhos mas roubar não seria um acto moralmente bom. O que ele diz é que há situações em que temos de violar um dever porque é menos trágico morrer uma pessoa do que 19, no caso. Já agora dou outro exemplo:
Imagina que um grupo de terroristas se apodera de um avião em Berlim. Os seus passageiros e tripulantes ficam reféns. Contudo, os terroristas propõem libertá-los se um cidadão local que eles consideram envolvido em actividades antiterroristas lhes for entregue para ser morto. Se as autoridades da cidade não colaborarem ameaçam fazer explodir o aparelho com todas as pessoas lá dentro.
As autoridades locais sabem que o cidadão em causa não cometeu o menor crime durante a sua vida e que os terroristas estão enganados pois não participou na morte de membros do grupo que agora dele se quer vingar. Não obstante, sabem que será vã a tentativa de convencer os terroristas de que estão enganados.
Após longa deliberação decidem entregar o referido cidadão aos terroristas que libertam os reféns e matam quem queriam matar.
ANA – Não saímos disto se não nos entendermos quanto a haver diferença entre matar e deixar morrer. Eu acho que há uma diferença importante. Neste caso…
JÚLIO -  Eu creio que este caso é bem diferente do outro. Aqui as autoridades tinham o seguinte dilema: ou deixamos morrer um ou deixamos morrer muitos (os passageiros e os tripulantes). No caso do José o dilema era ou mato um ou deixo morrer 19.
ANA  – O resultado vai dar no mesmo: ou se salvam muitas pessoas sacrificando uma ou se deixa morrer tudo. E não é como dizes. As autoridades tinham mais opções: podiam atacar o avião.
JÚLIO - O que eu quero dizer é que se não há diferença entre matar e deixar morrer, Kant perde para Mill.  Perde porque fica sempre de mãos atadas nestes casos dramáticos. Penso que é importante debater a diferença entre matar e deixar morrer, ou seja, entre actos e omissões.
Imagina que alguém passa por um lago e vendo uma criança aflita decide contudo seguir o seu caminho porque não quer molhar o fato ou perder um encontro, uma aula ou uma reunião de negócios. A criança morre por falta de ajuda. É evidente que essa pessoa não matou a criança mas deixou – a morrer. É costume pensar – se que há uma diferença moralmente relevante entre matar alguém e deixar alguém morrer. No primeiro caso trata-se de um acto, no segundo de uma omissão. Alguns utilitaristas não consideram moralmente relevante ou importante a diferença entre matar e deixar morrer. Vendo bem as coisas, quer matemos a criança ou a deixemos morrer, o resultado é o mesmo: a criança morre. É provável que Mill pense assim e julgue actos e omissões pelas suas consequências: no exemplo dado, consideraria de certo modo homicida a pessoa que se recusasse a socorrer a criança.

ANA -  Para mim, é difícil admitir que estoirar os miolos de uma pessoa seja o mesmo que deixar que outra pessoa faça isso.
JÚLIO -  Mas ninguém diz que é o mesmo. Só se trata de saber se há uma diferença moralmente significativa entre matar e deixar morrer. Se deixas morrer os teus filhos de fome não és tão criminoso como se os matasses envenenando – os ou outra coisa qualquer? O resultado é o mesmo.
ANA -  Mas é mais repugnante envenená – -los. No fundo, vamos sempre dar ao mesmo. Para os utilitaristas, em várias circunstâncias, os fins justificam os meios e acções imorais são permitidas e aprovadas. Para Kant, há normas morais absolutas e, sejam quais forem as consequências, não devem ser violadas.Para Mill certas consequências justificam certos actos. Para Kant, nenhum acto é justificado pelas suas consequências. Para Mill, importa sobretudo o que resulta do que fazemos. Para Kant importa unicamente o que fazemos e como o fazemos.
JÚLIO – Estou a ver que te inclinas para a ética kantiana.
ANA – Com todos os seus defeitos parece – me mais humana.
JÚLIO – Há quem diga que é a moral das mãos limpas para quem não tem mãos. É ineficaz. Mais vale sujar as mãos por uma causa melhor do que ser um fanático do dever que muitas vezes nada faz em nome do dever e dos direitos sagrados da pessoa. Prefiro quem age a quem prega boas intenções.
ANA – Estamos em desacordo. E cansados. Isto só mostra que as teorias éticas são todas muito discutíveis e que temos de ser  nós a tomar conta da nossa vida moral.
JÚLIO - Para Mill certas consequências justificam certos actos. Para Kant, nenhum acto é justificado pelas suas consequências. Para Mill, importa sobretudo o que resulta do que fazemos. Para Kant importa unicamente o que fazemos e como o fazemos.
ANA – Já que se fala tanto de consequências podemos prever ou calcular quais serão no futuro as consequências do que decidimos fazer?
JÚLIO – Por falar em futuro, tenho de ir trabalhar. Falamos disso numa próxima ocasião.

  
DIÁLOGO 5
O PROBLEMA DA PREVISÃO DAS CONSEQUÊNCIAS
ANA – Olá Júlio. Hoje vamos ter pouco tempo para conversar. Por isso, vou direita ao assunto que ficou pendente. Já que se fala tanto de consequências podemos prever ou calcular quais serão no futuro as consequências do que decidimos fazer?
JÚLIO - Essa é uma questão importante. As acções têm consequências imediatas e consequências a longo prazo. Estas últimas são muito difíceis de prever porque uma acção causa um certo estado de coisas, que por sua vez produz outro e assim sucessivamente, escapando ao nosso controlo. Como decidir que uma acção é boa se ainda não sabemos quais as suas consequências? Quanto tempo temos de esperar para saber se as nossas acções são boas ou más, tiveram bons ou maus resultados?
ANA - Na obra de ficção Génese e Catástrofe um médico salva a vida de mãe e filho num parto muito difícil. Depois de tudo resolvido as palavras do médico são: «Agora está tudo bem, senhora Hitler». Pode esta história ser considerada uma crítica justificada do utilitarismo? 
JÚLIO – É claro que não. Não passa de piada, como facilmente compreendes. Com um grande exagero mostra que o utilitarismo é uma teoria muito discutível. O utilitarismo de Mill não exige que estejamos sempre a calcular as consequências das nossas acções. Há situações que exigem decisões rápidas e pensar demais nas consequências do que faremos pode paralisar-nos e mais prejuízo do que benefício resultará eventualmente da nossa indecisão.
ANA  – Escolher o mal menor não é?
JÚLIO  – Ou o melhor bem possível tendo em conta o que se pode fazer. Dá atenção a este exemplo:
Suponhamos que duas pessoas caem de um barco e estão em risco de se afogar. Não tenho tempo para salvar as duas. Se levo demasiado tempo a decidir-me, ponderando imparcialmente quem socorrer, a certa altura é tarde demais. Na perspectiva utilitarista não se pode dizer que agi bem.
Para Mill não temos de calcular todos os efeitos das nossas acções porque podemos apoiar-nos na experiência de séculos da humanidade. Se ao longo de milénios os seres humanos tiveram de resolver problemas morais semelhantes aos nossos podemos aprender com os seus erros e sucessos para enfrentar os nossos problemas.
Quanto a esperar para saber se as consequências das nossas acções são boas devemos somente esperar uma razoável quantidade de tempo, que será maior consoante a complexidade das situações. Seja como for devemos saber conviver com a incerteza quanto ao futuro e basearmo-nos em expectativas razoáveis. É verdade que não podemos prever com certeza o futuro. Contudo, se temos boas razões para acreditar que de uma acção vão resultar as melhores consequências entre as alternativas disponíveis, então devemos realizá-la. Dadas as nossas limitações o que cada agente moral deve fazer é utilizar a melhor informação disponível para obter os melhores resultados. Não faz sentido, creio, rejeitar uma teoria consequencialista só porque as consequências são em muitos casos de longa duração e imprevisíveis.
ANA – Estás a querer dizer – me que  não é pura e simplesmente prático tentar calcular antecipadamente todas as consequências de todas as escolhas que fazemos.
JÚLIO -  Mesmo que nos limitássemos às escolhas mais significativas, haveria o perigo de, em muitos casos, estarmos a calcular em circunstâncias longe das ideais.
Poderíamos estar com pressa ou confusos, sentir fúria, estarmos magoados ou em competição. Os nossos pensamentos poderiam estar toldados pela ganância ou por ideias de vingança. Os nossos interesses pessoais ou dos que amamos poderiam estar em jogo.
ANA – Se bem te entendo, pode suceder não sermos muito bons a avaliar algo tão complicado como as consequências prováveis de escolhas importantes.
JÚLIO -  Por todas estas razões, é melhor adoptarmos alguns princípios (ou regras) gerais para a vida ética no quotidiano.Estas regras deveriam incluir as que a experiência mostrou ao longo dos séculos que conduzem em geral às melhores consequências, por exemplo, dizer a verdade, não prejudicar os outros, ou respeitar as promessas.
ANA – O nosso professor falou de um caso que pode ser cosiderado um refutação ao absurdo dos que criticam o utilitarismo neste ponto: Imagina que a avó de Ted Bunty, um assassino em série que matou dezenas de jovens estudantes americanas nos anos sessenta e setenta, o transportava ao colo quando bebé a caminho do centro de saúde. Ao subir as escadas escorregou e ficou na seguinte situação: se deixasse cair o bebé este morreria em virtude de graves ferimentos; se o mantivesse ao colo salvava o neto mas fracturava o braço. A avó escolheu o seu mal-estar poupando o neto.
JÚLIO - Podemos dizer que teria sido melhor para as futuras vítimas do então bebé Ted Bunty que a avó o tivesse deixado cair. Não podemos é dizer que ela devia ter previsto as consequências a longo prazo da sua decisão. Fez o que qualquer pessoa razoável faria.
ANA - De acordo. Mas o utilitarismo concentra – se demais no futuro, isto é, nas consequências prováveis das acções esquecendo que acções passadas criam obrigações que não podem ser suplantadas pela consideração da felicidade geral. Como gostaS de exemplos tenho este: De um milionário prestes a morrer recebo um cheque de 500 mil dólares. Comprometo-me a cumprir a sua última vontade: entregar essa quantia ao presidente do seu clube de futebol preferido. Contudo, a caminho do estádio, uma campanha contra a fome no mundo chama a minha atenção. Devo ser fiel à minha promessa ou contribuir para salvar milhares de pessoas famintas?
Creio que o utilitarista diria que salvar pessoas famintas seria a melhor acção e eu acho mal porque devemos honrar as nossas promessas.
JÚLIO  – Em qualquer dos casos, o utilitarista diria que agiste bem. Cumprindo a promessa reforças a confiança da sociedade em geral nas promessas e no seu cumprimento o que contribui para a felicidade geral.
ANA – Enfim... O nosso tempo está acabar. O que eu retenho desta discussão é que as teorias dos filósofos por mais difíceis e importantes que sejam são para ser discutidas e avaliadas. E que não devemos olhar para os filósofos como se fossem gurus ou guias espirituais. Ainda bem que discordam. Assim, ninguém tem o direito de me dizer que a verdade é o que algum deles diz.
JÚLIO  - Acresce que falamos de problemas para os quais não há solução científica. Assim, devemos ter sempre debaixo da língua a pergunta. «Será isto razoável?» Não chegámos a uma solução mas estamos mais esclarecidos do que quando começámos.
ANA – Pelo menos, compreendi melhor o que queriam dizer por mais insatisfeita que possa ficar com as teorias apresentadas.
JÚLIO – São humanos, não são perfeitos.
ANA – Ok. Obrigado pela paciência. Até breve. Quem sabe, mais uns filósofos.
JÚLIO – Até breve. Gostei muito de conversar contigo.































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